Corra! (Get Out), dirigido por Jordan Peele, é mais que um filme de suspense psicológico; é uma obra densa, simbólica e perturbadora, que desnuda o racismo com uma intensidade desconcertante. Aclamado pela crítica e celebrado pelo público, o filme utiliza o terror como veículo para explorar as tensões raciais contemporâneas, revelando-se uma das produções mais complexas e impactantes das últimas décadas.
A trama gira em torno de Chris Washington (Daniel Kaluuya), um jovem negro que visita pela primeira vez a família de sua namorada branca, Rose Armitage (Allison Williams), em uma viagem que, aos poucos, se transforma em um pesadelo de horror racial. O que inicialmente parece uma recepção amigável se revela um jogo macabro de dominação, repleto de camadas filosóficas sobre identidade, exploração e controle.
O ponto de partida para a tensão é o desconforto subentendido nas interações raciais. Peele constrói sua crítica à sociedade moderna através de sutilezas: os comentários "bem-intencionados" da família Armitage, que evocam uma admiração superficial pelos negros – "Eu votaria em Obama pela terceira vez, se pudesse" – soam como elogios inofensivos, mas carregam o peso do racismo velado. A tentativa da família de exibir uma aceitação "liberal" é, na verdade, uma forma de objetificação, onde o corpo negro não é visto como igual, mas como algo exótico, digno de apropriação.
Ao longo do filme, Peele utiliza uma simbologia poderosa que vai muito além da narrativa de superfície. A hipnose, praticada pela matriarca Missy Armitage (Catherine Keener), é um dos elementos centrais dessa construção simbólica. O "Lugar Afundado", para onde Chris é mentalmente enviado, é uma representação assustadora da alienação e impotência que os negros sentem em uma sociedade que os marginaliza e invisibiliza. No "Lugar Afundado", Chris está consciente de sua própria opressão, mas incapaz de agir – uma metáfora pungente para o racismo estrutural, que sufoca e subjuga suas vítimas enquanto elas assistem, impotentes, à sua própria desumanização.
A escolha de Peele por colocar o terror no âmago de uma família branca aparentemente progressista é outro elemento filosófico importante. A verdadeira ameaça em Corra! não é o racismo óbvio, explícito, mas aquele que se esconde sob a máscara da cordialidade. A elite branca do filme não odeia os negros da maneira tradicional; ao contrário, eles desejam possuir suas qualidades físicas e culturais. Esse desejo de apropriação é uma crítica mordaz à sociedade que consome e lucra com a cultura negra, mas rejeita a negritude real e viva. O procedimento cirúrgico que os Armitage realizam para transferir as consciências de brancos para corpos negros simboliza, de maneira brutal, esse desejo de controle e exploração do corpo negro.
A ambientação também reflete um labirinto filosófico: a casa dos Armitage, isolada e bucólica, parece, a princípio, um refúgio idílico, mas logo revela-se uma prisão moderna. Esse espaço fechado, onde os horrores se desdobram, remete à noção de panóptico, conceito desenvolvido pelo filósofo Michel Foucault, no qual o controle e a vigilância são internalizados. Chris está constantemente sob os olhares dos brancos da comunidade, vigiado, observado, como se estivesse em uma jaula invisível, onde ele não é apenas um convidado, mas uma presa.
Além disso, o filme faz uso magistral de metáforas visuais e sonoras. Um dos símbolos mais potentes é o cervo morto que Chris e Rose veem na estrada, logo no início. O cervo, para Peele, simboliza a caça, o sacrifício e a exploração, temas centrais do filme. Ao longo da trama, essa imagem é ressignificada: Chris, como o cervo, está sendo caçado, tanto literal quanto metaforicamente, por aqueles que desejam controlar sua identidade e seu corpo.
Na conclusão, Peele nos oferece uma catarse através da violência. A luta de Chris para escapar dos Armitage é uma metáfora para a luta constante contra o racismo sistêmico. Quando ele finalmente se liberta, o espectador não vê apenas uma vitória individual, mas uma afirmação de sobrevivência. O desfecho, no entanto, não oferece alívio total, pois o racismo, como entidade sistêmica, não pode ser derrotado com a fuga de um único indivíduo. A verdadeira questão que Peele nos deixa é: até onde podemos realmente escapar de estruturas tão profundamente enraizadas?
Com Corra!, Jordan Peele constrói um filme que não apenas redefine o gênero do terror, mas também faz uma dissecação afiada da sociedade contemporânea. A obra se sustenta como uma crítica poética e filosófica sobre a objetificação do corpo negro e o racismo velado que persiste na cultura ocidental. Ao transformar o cotidiano em um pesadelo, Peele nos força a confrontar verdades desconfortáveis sobre preconceito, privilégio e a luta pela identidade.