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    Dia do Cinema Brasileiro: Às vezes atacamos os filmes nacionais pelo que eles têm de melhor (Opinião)

    Apesar dos pesares, a nossa produção apresenta um altíssimo nível.

    "Eu não vejo filmes brasileiros. Só tem comédia fraca / Só tem sexo e violência / A qualidade é muito baixa". Quem nunca ouviu frases do tipo? O raciocínio é puramente retórico, claro. Primeiro porque, se a pessoa não assiste aos filmes brasileiros, não teria como julgar a qualidade dos mesmos, assim como seria necessário ao julgamento de qualquer outra obra. 

    Segundo, porque ele carrega preconceitos históricos infundados. A fama de que "filme brasileiro tem som ruim", por exemplo, deve-se mais às salas de cinema da metade do século passado, que não eram bem equipadas para a exibição, do que à qualidade dos nossos técnicos. A impressão de "pornografia", herdeira em grande parte do sucesso das pornochanchadas, torna-se um exagero evidente - estes filmes não são feitos há décadas e, mesmo naqueles anos, representavam uma parte pequena da produção total.

    Além disso, podem ser compreendidos sem julgamentos moralistas, enquanto sintomas de uma época. Em última instância, a recusa ao sexo pode ser questionada: por que temos tanto receio de nudez e violência em nossa produção, enquanto aceitamos estes mesmos elementos com tamanha facilidade em filmes e séries norte-americanos? 

    Isso nos leva a uma questão de produção. Sim, é difícil comparar o tamanho de uma produção como Vingadores - Ultimato (que custou US$350 milhões) com bons filmes nacionais como Marighella ou Bacurau, orçados em alguns milhões de reais. A questão diz respeito menos à qualidade dos nossos profissionais do que à verba disponível e às proporções específicas de cada projeto - felizmente, nosso cinema produz muitas obras que se encaixam nesta verba mais restrita, e mais plausível dentro do cenário cultural. 

    Para além dos preconceitos habituais, a produção contemporânea enfrenta uma atípica campanha contrária à cultura brasileira. O boicote aos filmes nacionais parte de órgãos institucionais e figuras de poder, que buscam associar diretores, atores, atrizes, roteiristas, produtores, diretores de fotografia e tantos outros profissionais à imagem de aproveitadores da verba pública.

    Ora, na grande maioria dos países, o governo local investe na cultura que, afinal, será revertida em bens à própria população e gerar lucros, além de garantir empregos. Mas no Brasil, uma arte feita para o público é cada vez mais vista, ironicamente, como um serviço contrário à população. Luta-se para fazer arte a um grupo social que inclui, em partes, pessoas que rejeitam a arte. 

    Esta ideologia tem dado origem a medidas de retaliação à produção nacional. Filmes recompensados em festivais não receberam o prêmio a que têm direito; a cota de tela está sendo evitada; o repasse de verbas decorrentes de leis de incentivo está paralisado; e novos líderes culturais apelam a uma "arte conservadora", enquanto ironicamente pregam contra a doutrinação. 

    No entanto, esta é a época em que o cinema brasileiro, apesar das dificuldades, tem produzido filmes excelentes e, mais do que isso, favorecido uma verdadeira sensação de coletividade, pensando o cinema como um bem social ao invés de uma coletânea de obras esparsas.

    Nomes como Kleber Mendonça Filho, Karïm Ainouz, Flávia Castro, Petra Costa, Paula Gomes, Affonso Uchôa, João Dumans, Juliana Antunes, Márcio Reolon, Filipe Matzembacher, André Novais, Maria Augusta Ramos, Luiz Bolognesi, Laís Bodanzky, Adirley Queirós, Alê Abreu, Marco Dutra, Juliana Rojas, Gabriel Mascaro, Vânia Catani, Sara Silveira, João Vieira Jr., Rodrigo Teixeira, Wagner Moura, Bárbara Wagner, Cristiano Burlan, Benjamin de Burca, Alice Riff, Marcelo Caetano, Caetano Gotardo, Gustavo Vinagre, Renée Nader MessoraJoão Salaviza e tantos outros têm produzido obras fortes, ousadas, escolhidas para representar o Brasil no mundo inteiro.

    Como resultado, venceram prêmios nos principais festivais internacionais, como Cannes (Bacurau, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos), Berlim (Tinta Bruta, Bixa Travesty, Aeroporto Central), Veneza (Boi Neon), Locarno (As Boas Maneiras) e Roterdã (Azougue Nazaré, O Som ao Redor). Fora do país, a impressão é de uma produção vistosa, que não raramente figura nas listas de melhores filmes do ano de revistas prestigiosas como Cahiers du Cinéma e Sight and Sound.

    Em termos de temáticas e linguagens, estas obras retratam um país em transformação, destacando as figuras marginalizadas dos operários, dos cidadãos negros, das mulheres, dos indíviduos LGBTQI, enquanto apresentam uma visão crítica das classes privilegiadas e dos representantes do poder. Talvez por isso tenham incomodado tanto, cumprindo portanto o propósito de romper expectativas e fomentar debates. 

    Em paralelo, o cinema-indústria se consolidou com o star system da comédia (Leandro Hassum, Paulo Gustavo, Ingrid Guimarães, Fábio Porchat, Larissa Manoela), com as biografias dramáticas/religiosas e as aventuras infantis. Por mais que diversos críticos torçam o nariz para esta produção, são capazes de reconhecer que, dentro de uma cinematografia, ocupam um lugar necessário e complementar às obras de invenção e pesquisa estética.

    Ao mesmo tempo, os festivais nacionais, se desenvolveram e consolidaram a vocação de descobrir novas vozes e estimular diálogos. O Festival de Brasília, de Gramado, o Cine Ceará, Olhar de Cinema, Cine PE, Janela de Cinema, Mostra Internacional de São Paulo e Festival do Rio foram fundamentais para trazer ao público algumas obras de difícil inserção no circuito comercial e lançar novos criadores. 

    Talvez este mesmo sucesso tenha gerado uma impressão de luxo e privilégio, que em realidade jamais correspondeu à estrutura da produção nacional. Estas obras foram erguidas com esforço de centenas de pessoas, muitas vezes ao longo de anos para cada projeto, desde a captação até a produção, filmagem, finalização e distribuição. 

    Por isso, interromper meios de financiamento como o Fundo Setorial do Audiovisual e a Lei Rouanet, tão mal compreendidos no imaginário popular, não acabaria com "excessos" e despesas desnecessárias, apenas paralisaria a produção - tanto dos bons filmes quanto dos ruins, indispensáveis a qualquer filmografia. 

    Para o espectador, o fato de se recusar a ver filmes brasileiros, seja porque ele precisou de dinheiro para ser feito (e qual filme, de qualquer país, não precisa?), ou por ter sido realizado por autores progressistas, equivale a desconhecer a capacidade de discordar e debater a partir da sessão. Existem muitos discursos possíveis dentro de cada obra - basta ver os recentes O ProcessoExcelentíssimosDemocracia em Vertigem que, partindo de pontos semelhantes, chegam a resultados totalmente distintos.

    Em outras palavras, existem muitas esquerdas dentro da esquerda, muitas direitas dentro da direita, e muitas artes dentro de um único país. Boicotar as produções nacionais enquanto se dedica tantos recursos a blockbusters estrangeiros e séries equivale a perder a oportunidade de encontrar narrativas e personagens que dizem muito mais sobre nós mesmos do que obras estrangeiras.

    O que mais precisamos neste momento é a capacidade de nos confrontar, de dialogar, e de olhar no espelho. É isso que proporciona o nosso melhor cinema: uma ferramenta para compreender esses tempos difíceis.

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