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    Opinião: As mulheres em Hollywood, um passo de cada vez

    Ou: Como o Time's Up, o capitalismo e os movimentos sociais estão (ou não) transformando a cena audiovisual.

    DeviantArt/PaulWhipps/Reprodução

    Desde quando Harvey Weinstein foi acusado de assédio e estupro por dezenas de atrizes, diretoras e produtoras, o que Hollywood tem acompanhado é um movimento que tomou conta das manchetes dos portais, dos textos publicados em redes sociais, das cerimônias da recém-encerrada temporada de premiações. Dois meses após a primeira denúncia contra então magnata (ocorrida em outubro de 2017), surgiu o Time’s Up, o movimento #MeToo já havia se expandido (com emoji no Twitter e tudo), e junto a isso abriu-se espaço para o Never Again, organização majoritariamente estudantil que luta contra o porte de armas. Todos nós sabemos o quão importante é lutar pelos direitos das minorias, embora haja quem considere tudo uma grande bobagem — ou “mimimi”. Por mais divertido que seja debater a relevância de levantes sociais, o objetivo aqui é outro. A questão, na verdade, é mais simples: por que agora?

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    Nada existe em um vácuo, portanto é necessário enxergar o que está em volta. Basta uma passada pela timeline do Twitter ou pelo feed do Facebook para a simples conclusão de que estamos vivendo a era mais politizada que as redes sociais já viram. O mundo nunca foi “não politizado”, mas o que enxergamos aqui, pela primeira vez, é a efetiva transição dos debates para as páginas virtuais — nem sempre exatamente recompensadores, mas ainda assim importantes porque revelam o quão diferentes são as visões de mundo. A consciência do feminismo, da representatividade negra e LGBT são debates que vêm desde antes das redes, mas o ambiente virtual ajuda (e muito!) a disseminar o real objetivo destas lutas. Ninguém quer explodir todos os homens brancos e heterossexuais. O ponto é apenas existir em conjunto, de igual para igual.

    Se não com o #MeToo, quando foi que Hollywood resolveu “se importar” com as minorias, então? Em retrocesso, o movimento Oscars So White surgido em 2015 talvez tenha sido o primeiro grande indício de que algo maior estaria por vir. Por dois anos seguidos, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas foi criticada pela falta de indicados negros ao prêmio máximo do cinema. A situação mudou radicalmente entre 2016 e 2017, quando a Academia convidou centenas de novos membros de etnias, gêneros, origens e idades diferentes. O que resultou na inesquecível vitória de Moonlight sobre La La Land em 2017, no prêmio de roteiro de Corra! neste ano e nas indicações de Rachel Morrison, Octavia Spencer, Mary J. Blige, Daniel Kaluuya, entre outros.

    Mas como pontuou April Reign, a criadora da hasthtag, à época das indicações, ainda é cedo para cantar vitória:

    “Enquanto estivermos vociferando ‘primeiras vezes’ após 90 anos de história, enquanto ainda pudermos contar nos dedos as indicações de comunidades sub-representadas em uma categoria específica, o #OscarsSoWhite permanece relevante. A luta continua.”

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    Ainda assim, mudanças efetivas têm ocorrido. Em agosto de 2016, o presidente do canal FX, John Landgraf, dedicou parte de seu painel executivo durante o TCA para agradecer à jornalista Maureen Ryan, crítica sênior de séries de TV da Variety, pelo “puxão de orelha”. Ela havia publicado um estudo em novembro do ano anterior denunciando a falta de diversidade entre os diretores de TV nos canais a cabo norte-americanos: AMC, FX, HBO, Netflix e Showtime. Desde então, o FX demonstrou imediato empenho em mudar o quadro, e já na temporada 2016-17 teve 51% de seu quadro de diretores formado por minorias, entre homens de minorias étnicas e mulheres, caucasianas ou de cor.

    O resultado prático disso foi que, a longo prazo, o FX se tornou a emissora queridinha da crítica: foi graças a esta abertura que o canal encontrou séries como Atlanta e Better Things, projetos passionais de Donald Glover e Pamela Adlon. Foi nesta brecha também que Ryan Murphy, então favorito da casa, criou a Fundação Half, e em dezembro de 2016 já havia entregado 60% de seus cargos de direção a mulheres — 10% a mais do que o inicialmente planejado. E foi na diversidade de vozes que o canal encontrou uma maneira extremamente simples e eficaz de permanecer relevante em meio ao mar de séries do Peak TV.

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    Não foi muito diferente nos cinemas. Em seu monólogo de abertura do Oscar deste ano, Jimmy Kimmel provocou: “O sucesso de Pantera Negra é uma das muitas histórias positivas deste ano. Especialmente para negros e Bob Iger [CEO da Disney]. Pantera Negra e Mulher-Maravilha são sucessos massivos, o que é quase improvável, porque eu me lembro de uma época em que grandes estúdios não acreditavam que uma mulher ou uma minoria poderiam estrelar um filme de super-herói. E eu me lembro disso porque foi em março do ano passado.”

    Portanto, sim, as mudanças são recentes, e por isso talvez menos expressivas do que gostaríamos. A maior certeza é que, ainda assim, elas incomodam. Exaltar Pantera Negra ou Mulher-Maravilha pelos seus ótimos retratos de mulheres e negros em posição de poder chega a ser ofensa pessoal para alguns. Hollywood entendeu, depois de muito tempo, que aproveitar os discursos empoderados é lucrativo. Não que esta seja a maior descoberta do século — conhecemos a lei número 1 do sistema capitalista. Também não é errado, e pelo contrário, o alto potencial lucrativo destas histórias apenas prova um ponto: as minorias existem, querem ser vistas e ouvidas. E, numericamente, nem mesmo poderiam ser chamadas de “minorias”.

    O mesmo que Reign havia dito a respeito do Oscars So White continua valendo para esta recém-nascida onda de grandes “blockbusters conscientes”. É preciso ter um olhar clínico sobre toda a indústria, porque qualquer mudança leva tempo e nem todas são reais.

    Tomemos como exemplo a cerimônia do 60º Grammy Awards, ocorrida no último dia 28 de janeiro. Criticada nos últimos anos também pela falta de diversidade entre os indicados, a Recording Academy exaltou entre os nomeados de 2018, merecidamente, Jay-Z (8), Kendrick Lamar (7), Bruno Mars (6), Childish Gambino (5), Khalid (5), SZA (5), No I.D. (5). Lamar ganhou cinco dos sete prêmios, e Mars foi o maior vencedor da noite. O que sobrou em representatividade de artistas não-brancos (entre negros e latinos) faltou em representatividade feminina. Enquanto três das cinco posições em melhor nova artista foram ocupadas por mulheres, elas tiveram somente duas indicações das 15 das categorias principais — uma em canção do ano (‘Issues’, de Alessia Cara) e uma em álbum do ano (‘Melodrama’, de Lorde). Nenhuma das duas venceu, mas Cara levou o prêmio de melhor nova artista.

    A contradição ficou em evidência após a neozelandesa Lorde ter sido a única que não foi convidada a fazer uma apresentação solo entre os indicados ao maior prêmio da noite. A Variety publicou que a artista foi convidada a participar apenas de uma homenagem a Tom Petty junto a outros artistas — que seus agentes recusaram. Mais tarde, a mãe de Lorde (a poetisa Sonja Yelich) publicou em seu Twitter o trecho de um artigo do New York Times que denuncia: apenas 9% dos 899 indicados ao Grammys nos últimos seis anos são mulheres.

    A organização da cerimônia, no entanto, se importou em “fazer bonito”. Kesha fez uma emocionante apresentação de seu hit, “Praying”, junto a outras mulheres, em um momento dedicado a chamar atenção para o sexismo da indústria. Muitos dos artistas compareceram usando rosas brancas em suas roupas, em apoio ao Time’s Up. Mas Alessia Cara foi a única mulher a vencer um dos prêmios televisionados. Entre os 86 entregues no total, apenas 17 foram para mulheres ou grupos que tinham mulheres em sua formação.

    Em entrevista nos bastidores, o presidente da Academia Neil Portnow justificou a esnobada dizendo simplesmente que as mulheres precisam “se impor mais.” Vai sem dizer que a fúria foi imediata: “As mulheres estão fazendo isso desde o início dos tempos. As mulheres dominaram a música neste ano. E fizeram isso todos os anos anteriores”, declarou Pink.

    Se as mulheres estão fazendo e não estão sendo devidamente reconhecidas, onde começa a mudança?

    A resposta talvez já esteja entre nós. Quando Frances McDormand aceitou o seu prêmio de melhor atriz por Três Anúncios para um Crime no 90º Oscars, ela clamou por cláusula de inclusão (ou “inclusion rider”). Antes disso, Reese WitherspoonNicole Kidman mostraram que é possível com Big Little Lies, uma das duas maiores séries de 2017, uma forte história de sobrevivência e abuso sexual. A outra grande série do ano passado, aliás, é The Handmaid’s Tale.

    Deu para entender?

    Big Little Lies nasceu exatamente porque Reese Witherspoon e Nicole Kidman estavam “cansadas” de ver mulheres sendo mal representadas. Elas conceberam o projeto e reuniram um poderoso time no elenco e na produção, e o resultado arrebatou absolutamente todos os prêmios a que concorreu. Todos.

    Com sua produtora, Witherspoon está agora patrocinando pelo menos quatro novas séries, que darão outras oportunidades para atrizes novatas e pretende trazer mulheres fortes para o centro das tramas. Ao mesmo tempo, o Time’s Up já começou a prover assistência legal a mulheres vítimas de abuso sexual. Na última semana, Evan Rachel Wood fez um emocionante depoimento ao Congresso dos Estados Unidos, para defender a criação de uma Carta dos Direitos Civis para Sobreviventes de Assédio Sexual. Na França, as atrizes lançaram um fundo de ajuda para mulheres vítimas de assédio. A Marcha das Mulheres, que ocorreu em várias capitais em 2017 após a posse de Donald Trump, retornou em 2018 com mais força.

    Isso tudo não é para afirmar que a indústria do entretenimento de uma hora para outra tomou um “chá de consciência”. Trata-se de um processo lento, cujos resultados verdadeiros só serão vistos a longo prazo. Mas Pantera Negra foi feito. Mulher-Maravilha também. Charlize Theron bateu em todo mundo em Atômica, e Capitã Marvel está chegando. Todos os episódios da segunda temporada de Jessica Jones foram dirigidos por mulheres. Um filme de terror social venceu o prêmio de melhor roteiro original no Oscar, e um drama gay foi o melhor filme do ano em 2017. Talvez haja uma solução, no fim das contas.

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