Minha conta
    O Homem que Matou Dom Quixote, ou como Terry Gilliam levou quase 30 anos para concluir o filme

    Um passeio pela verdadeira odisseia de três décadas que envolveu separações, mortes, processos e dilúvios.

    O ano é 1989. George H. W. Bush, que viria a falecer em 2018, acaba de tomar posse como o 41º Presidente dos Estados Unidos. O partido neonazista é oficialmente banido da Alemanha Oriental. A cidade de Palmas, capital do Tocantis, acaba de ser fundada. O Muro de Berlim finalmente é derrubado. A Proclamação da República Brasileira completa 100 anos. Terry Gilliam tem a ideia para o filme O Homem que Matou Dom Quixote depois de analisar por completo a obra de Miguel de Cervantes

    Nos últimos 30 anos, muitas mudanças ocorreram no curso da história da humanidade. Presenciamos o nascimento de tecnologias como o telefone sem fio, o aparelho de DVD, a lâmpada de LED e as TVs de altíssima resolução. Enquanto tudo isso acontecia, Gilliam passava pelas mais inesperadas desventuras possíveis para tirar do papel seu projeto. 

    Destinado a passar por três décadas de azar e acontecimentos que fariam inveja a qualquer obra surrealista, O Homem que Matou Dom Quixote foi lançado nos cinemas brasileiros neste dia 6 de junho. Mas para que isso fosse possível, muitos obstáculos precisaram ser superados. Vamos do início. 

    Preparando Terreno

    Estamos em 1989, quando o diretor Terry Gilliam levanta de sua cama e começa uma longa reflexão a respeito das possibilidades para uma reinvenção da obra clássica Dom Quixote. Mais tarde, ele viria a relatar que, naquele dia, organizou tudo perfeitamente na sua cabeça, faltando apenas um detalhe importantíssimo: ler o livro.

    Depois de alguns meses absorvendo o material em suas camadas mais profundas, Terry chega até a única conclusão possível a respeito de sua ideia inicial: seria impossível filmar o que ele tinha em mente. Possivelmente, por falta de sensatez e pequenos traços de insanidade, ele decide seguir em frente e começa a escrever os primeiros esboços para o argumento, junto a Charles McKeown, com quem já havia trabalhado no filme Brazil

    Durante os nove anos anos seguintes, o roteiro é minuciosamente elaborado enquanto Terry divide seu tempo entre outras produções, como Os 12 Macacos, lançado em 1995. Durante uma entrevista feita em 1998, ele anuncia publicamente que seu próximo filme seria inspirado em Dom Quixote.

    A primeira tentativa

    Perdido em La Mancha

    O ator francês Jean Rochefort é o primeiro escalado do filme. Ele começa a ter aulas de inglês e passa sete meses preparando-se. Enquanto isso, Terry viaja para a Espanha com sua equipe técnica para começar o trabalho de cenografia e de locações. Johnny DeppVanessa Paradis são confirmados nos outros dois papéis principais.

    Já em 2000, faltando dois meses para o início das filmagens, a produção sente dificuldades para contactar Depp, e Paradis sequer assinou contrato. Já na semana das primeiras tomadas, o set é parcialmente destruído devido a uma tempestade que inunda completamente o local. Por estar localizado em meio a uma rota de aviões, o filme, ainda em sua pré-produção, também sofre devido a inseguranças e problemas no áudio.

    Os produtores tentam contactar a equipe de seguro para reaver os materiais danificados, o que inicia uma disputa judicial complicada. A esta altura, a tempestade já destruiu uma parte do cenário e prejudicou toda a continuidade planejada, o que obriga a equipe a mudar totalmente o set de lugar. Durante uma entrevista, o diretor de fotografia, Nicola Pecorini, afirma que nunca presenciou um filme tão azarado em seus 22 anos de carreira. Aquela era apenas a primeira tentativa. 

    Jean Rochefort, que já havia se queixado para Gilliam sobre dores no corpo, encontra dificuldades para se mover durante as preliminares da gravação e sequer consegue sentar-se em seu cavalo. Ele demora 40 minutos para ser levado até seu carro, por mal conseguir se mover direito. O ator é diagnosticado com dupla hérnia de disco e seus médicos dizem que ele poderia retornar em uma semana. Depois, adiam para duas semanas. Então, para um mês. Assim, até que se afastasse de vez para tratar da hérnia. Ele morreria 17 anos depois sem assistir ao filme pronto.

    Como Jean e Johnny eram parte fundamental do projeto, para manterem os investidores interessados, os produtores logo foram se retirando do projeto após a possibilidade de saída dos astros. Rapidamente, os patrocinadores abandonam o barco também. Sem nenhum aviso, o filme é interrompido sem previsão de retorno. 

    Uma segunda chance

    Perdido em La Mancha

    Terry inicia sua procura a novos investidores mas não é bem sucedido e falha em conseguir retomar seu projeto. Neste meio tempo, o documentário Perdido em La Mancha é lançado, em 2002, retratando justamente todas as dificuldades da produção. 

    Tudo permanece imóvel até 2005, quando Terry conta, em entrevista para a Empire, que está trabalhando novamente no roteiro. Depp segue firme nos planos e Gérard Depardieu é o principal cotado para o papel de Dom Quixote. Em 2008, os direitos do filme são reconquistados por Gilliam, que volta a recrutar um novo elenco. 

    A produção começa do zero, e Johnny Depp decide abandonar o projeto. A esta altura, ele já está casado com Vanessa Paradis, que conheceu durante a primeira pré-produção, em 1999. Ewan McGregor é escolhido como o substituto de Depp, enquanto Robert Duvall está prestes a assinar o contrato para o papel de Quixote. Tudo parece finalmente estar fluindo. Em 2010, dois anos depois de conseguir os direitos de volta, Terry perde o financiamento que havia conseguido.

    Já virou lenda

    Desta vez, com produção da Amazon Studios, O Homem que Matou Dom Quixote renasce. Terry Gilliam afirma durante entrevista ao The Hollywood Reporter que já está atormentado pelo projeto: "Isso já está acontecendo por muito tempo, sinto como se fosse um tumor, eu só quero tirar isso do meu corpo. Eu nem sei se o filme será bom. Só quero me livrar dele". 

    Agora com uma versão mais contemporânea do roteiro, o filme se passa nos dias atuais e traz vertentes totalmente diferentes das anteriores. O ator John Hurt é o grande escolhido para fazer o papel de Quixote. Todos parecem estar completamente confiantes na nova versão do longa e também em seu financiamento. Mas ainda não era o fim. 

    John é diagnosticado com câncer de pâncreas e se afasta do projeto por tempo indeterminado, deixando a equipe de produção sem saber o que fazer. Eles optam por esperar para que o ator faça um tratamento médico e, só então, iniciar as etapas seguintes. O filme, novamente, não vai para frente. Assim como Jean, Hurt viria a falecer em 2017, sem ter visto a versão final.

    É agora! 

    Elite Films

    Em 2016, Adam DriverJonathan PryceStellan SkarsgårdOlga Kurylenko são escalados para a nova versão do filme, que agora conta com a promessa do produtor Paulo Branco para realizar o financiamento. De acordo com ele, US$18 milhões seriam direcionados para o orçamento das filmagens. Meses depois, ele não entrega o pagamento e é retirado do projeto. 

    A obra segue com outros patrocinadores e produtoros executivos. O set é montado em Portugal, e a equipe é acusada de danificar patrimônios históricos do local, o que gera uma investigação do governo português. Depois de realizar diversas perícias, eles apontam que os danos foram insignificantes e dão sinal verde para que tudo finalmente prossegua. Parece sonho. 

    Pela primeira vez em 28 anos, as filmagens vão até o final, entre trancos e barrancos. Muitos atores aceitam receber menos do que costumam, apenas por acreditarem no projeto. Com o lançamento marcado para ocorrer em Cannes, o ex-produtor do projeto, Paulo Branco, entra com um processo judicial para impedir sua estreia, por se considerar dono do filme. 

    Paulo perde o processo e a obra é liberada para participar do Festival de Cannes em 2018. O longa é elogiado e Terry Gilliam mostra-se aliviado em finalmente poder tirar sua ideia do papel. 30 anos depois. Um casamento, filhos, separação, dois falecimentos, um dilúvio e três processos judiciais depois. Tudo isso culminou para que, no dia 6 de junho, O Homem que Matou Dom Quixote chegasse aos cinemas brasileiros.

     

    facebook Tweet
    Links relacionados
    Comentários
    Back to Top