Que horas ela volta? Por Pablo Santos
A relação de patrões e funcionários não é a única temática abordada no filme brasileiro Que horas ela volta? Produzido pela Globo Filmes. Pandora Filmes, 2015. Roteiro e direção de Anna Muylaert, criticando as desigualdades sociais do país com um teor necessário podendo causar desestima ou até mesmo mudanças comportamentais aos que se identificam com ao menos um dos seus personagens.
Regina Casé dá vida a figura principal e consegue tomar para si a responsabilidade de destaque, cumprindo proficientemente o papel da Val, uma pernambucana vivendo em São Paulo, obstinada a servir seus patrões, sendo fielmente dedicada ao ofício. Ela é uma mulher muito amorosa com as pessoas do seu convívio e encargos. Val deixa suas vontades pessoais para depois e prioriza a vida dos que a abrigam, em especial, Fabinho (Michel Joelsas) que através da convivência, acaba demonstrando mais afeto reciprocamente a sua funcionária do que a própria mãe. Durante o drama, são exibidas cenas às quais o jovem abdica de sua suíte confortável para dormir no caloroso e pequeno quarto dos fundos com sua segunda mãe.
De acordo com uma pesquisa do IBGE lançada no mesmo ano da estreia do filme, no Brasil, mais de 7 milhões de pessoas saem da cidade onde moram para trabalhar em outra.
Como é o caso da Val, essa situação acaba refletindo nas suas questões familiares, pois ela delega a criação da filha, Jéssica, interpretada pela atriz Camila Márdila, com o intuito de ter condições para suprir as necessidades financeiras da filha. Mais tarde, conflitos surgem, pois Jéssica muda para São Paulo para prestar o vestibular mais disputado do país tendo que ser abrigada na casa dos patrões da sua mãe. Ela só descobre onde vai morar quando está no caminho da residência e acaba se chateando com a notícia.
Camila faz seu papel com exímio e toma espaço durante suas aparições, trazendo questões pontuais para a história, quando
Jéssica chega a nova moradia, surpreende Carlos, feito pelo ator Lourenço Mutarelli, herdeiro com uma vida sacal que deixou a arte plástica de lado para ser sustentado pelo que herdou e pela sua esposa Bárbara (Karine Teles), uma mulher egóica da alta sociedade e que juntamente se impressiona com a inteligência da sua nova hóspede. Além dos seus interesses sociais, Bárbara é preocupada com seu herdeiro, Fabinho no quesito estudos e aparentemente só nisso, tendo em vista que o afeto é suprido por Val que cuida do moço desde bebê. No decorrer do filme, percebesse a diferença das prioridades da mãe e da filha, ao mesmo tempo a história das duas e de inúmeros brasileiros da classe trabalhadora se repetindo. Val saiu do Recife para trabalhar, deixando sua filha sob cuidados de terceiros, Jéssica foi morar em outro estado em busca de um diploma em arquitetura, também ausentando-se da sua criança que só é sabida da sua existência pela avó, no futuro. No primeiro momento da obra, Fabinho faz a pergunta que intitula o filme, se referindo a volta de Bárbara, próximo ao
encerramento, é a vez de Jéssica fazer alusão ao título, dizendo a Val que quando era criança, se perguntava que horas ela voltaria. O roteiro conversa consigo mesmo durante todo o tempo, trazendo para o meio ou final, assuntos relevantes que foram ditos no começo, fazendo observações que para quem o assiste com atenção, em imediato associa as vidas dos personagens com queixas parecidas em cenários diferentes.
Val é reafirmada pelos seus patrões que quase é da família, e tão somente pelos vistos tratada como tal. A fotografia do
filme é inaudita e coopera para ilustrar a dinâmica de empregado e empregador. Val aparece com infinitas obrigações, passando um cansaço só em assistir, sempre sendo pedida para fazer algo que a coloca em um lugar de funcionária e nunca chegando a ser parenta, mostrando a enorme carga de trabalho que muitos empregados são postos a cumprir em troca de um salário nem sempre a altura. O fato de Val não ter entrado na piscina de onde mora em anos que lá habita, o sorvete diferente que deve tomar, sempre chamando dona Bárbara e doutor Carlos, distanciando suas relações, não podendo fazer suas refeições na mesa principal e sendo delimitada a cozinha e ao seu quarto. Com a chegada de Jéssica, Val tentou passar seus costumes à filha, porém a moça não comprou a ideia, entrando na piscina, tomando o sorvete que desejava, chamando os anfitriões apenas pelos seus nomes e até sendo servida por Bárbara.
O alívio após Jéssica passar no vestibular para a felicidade nítida da sua mãe, inveja escancarada de Bárbara e sutil comparação de Fabinho que não teve o mesmo êxito.
Val pede demissão para cuidar da sua filha e neto, pedindo para trazer o menino para morarem juntos na sua nova casa.
Essa cena é como um bálsamo após os aperreios exibidos no melodrama. Todo o reconhecimento é pouco ao filme que mostra a realidade de diversos indivíduos que se reconhecem em alguma parte do enredo. Uma obra de arte brasileira felizmente executada com maestria pela Muylaert, seus atores e outros envolvidos, acaba resultando em orgulho para o cinema nacional e embrulho no estômago de quem pode e não se move para mudar essa verdade no nosso país.