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    Capitã Marvel: O que o "jovem" Nick Fury tem a dizer sobre o futuro do cinema? (Análise)

    Estaria a sétima arte entrando na era da eternidade?

    Nascido em 1948, o astro Samuel L. Jackson, um dos mais prolíficos e aclamados atores de sua geração, completará 71 primaveras no próximo mês de dezembro. Entretanto, em sua mais recente empreitada nas telonas, reprisando o papel de Nick Fury, um de seus mais icônicos personagens, pela décima vez, pelo menos duas décadas surpreendente e convincentemente desaparecem da fisionomia do ator por meio da avançada tecnologia digital de rejuvenescimento facial empregada pela Marvel. Contudo, o impacto dos excelentes efeitos especiais de Capitã Marvel excede o âmbito do mero espetáculo.

    De fato, era apenas uma questão de tempo para que uma indústria tão tecnologicamente avançada quanto a de Hollywood — que prova há pelo menos 20 anos, desde a primeira trilogia de O Senhor dos Anéis, que pode transformar seres humanos em criaturas fantásticas com o máximo de realismo — buscasse recuperar e resgatar os rostos de suas principais estrelas quando jovens. Ou quando muito mais velhas, como demonstrou O Curioso Caso de Benjamin Button, épico dramático de David Fincher cuja narrativa não poderia funcionar sem incontáveis manipulações digitais da idade e aparência de Brad Pitt.

    Warner

    Em um espaço de dois anos desde o lançamento de X-Men: O Confronto Final, de 2006, um dos primeiros blockbusters a rejuvenescer seus protagonistas — os melhores amigos Patrick Stewart e Ian McKellen, neste caso, durante uma única cena —, a tecnologia fez evoluir o processo a passos tão largos que Fincher, um dos mais perfeccionistas, exigentes e inovadores cineastas da atualidade, pôde sentir-se confortável para utilizá-la em larga escala. Àquela época, em 2008, às vésperas do lançamento do arrojado Avatar de James Cameron, a sétima arte adentraria uma nova era — mesmo sem saber.

    Como no caso de toda inovação tecnológica, a técnica de rejuvenescimento caminhou paulatinamente nos primórdios de seu emprego generalizado no universo dos blockbusters, mesmo com a barreira claramente ultrapassada por Tron: O Legado, que trouxe de volta o Jeff Bridges dos anos 80, e do Tron original, para as telonas. No entanto, a despeito do fiasco da aventura eletrônica da Disney com Garrett Hedlund e Olivia Wilde, a real importância de Tron: O Legado para nossa discussão é a inauguração do alinhamento crítico entre passado e presente no que se refere ao processo em questão.

    Por mais que a questão temporal esteja evidentemente presente em X-Men: O Confronto Final e O Curioso Caso de Benjamin Button, nenhum dos dois longas pode ser categorizado sob o contemporâneo guarda-chuva da afoita e voraz nostalgia hollywoodiana, constantemente interessada em reciclar e reutilizar. Ao passo em que O Confronto Final é o último capítulo de uma trilogia original — ou "a" trilogia original do cinema moderno de super-heróis — e que o drama de Fincher é a adaptação do conto homônimo, Tron: O Legado é o único do trio a resgatar uma produção de quase 30 anos de idade.

    É importante ressaltar esse ponto porque, a partir da ficção científica de Joseph Kosinski, Hollywood percebeu que poderia capitalizar sobre seus produtos do passado sem precisar recorrer a refilmagens ou reboots, mantendo o elenco original de títulos amados pelo público, independentemente de sua idade. Não é de se admirar, por exemplo, que Peter Jackson, fundador da progressista e ultra-tecnológica companhia de efeitos especiais WETA (O Senhor dos Anéis, trilogia Planeta dos Macacos) tenha aderido ao rejuvenescimento facial com o Legolas de Orlando Bloom em O Hobbit: A Desolação de Smaug.

    Desse modo, por mais que o ator tenha naturalmente envelhecido na década que separa O Retorno do Rei e A Desolação de Smaug (2003-2013), Jackson ainda assim pôde apresentar o querido elfo — um ser que envelhece muito menos do que os humanos, diga-se de passagem — ainda mais jovem do que quando apareceu pelas primeiras vezes nas telonas, uma vez que a trilogia O Hobbit precede cronologicamente a trilogia O Senhor dos Anéis. Prequels e principalmente flashbacks, uma das técnicas cinematográficas mais antigas, remontando aos anos 1930, acabavam de ganhar uma nova dimensão e potência.

    Não demorou para que a Marvel enfim entrasse no jogo, empregando o rejuvenescimento facial em seu todo-poderoso Universo Cinematográfico. Recorrendo à empresa Lola VFX — responsável pelos efeitos especiais dos supracitados O Confronto Final e O Curioso Caso de Benjamin Button —, a Casa das Ideias empregou a tática digital pela primeira vez em Homem-Formiga (2015) para introduzir Hank Pym, personagem de Michael Douglas, no fim dos anos 1980, período em que o duas vezes vencedor do Oscar encontrou o auge de sua carreira com produções como Atração Fatal e Wall Street - Poder e Cobiça.

    De lá até 2018, antes de embarcar de vez na tecnologia para a totalidade da narrativa de Capitã Marvel, a gigante do entretenimento ainda empregaria o processo de rejuvenescimento facial em outras três ocasiões, sempre para lidar com flashbacks e sequências "genealógicas": com Robert Downey Jr., no prólogo de Capitão América: Guerra Civil (2016); Kurt Russell, na sequência inicial de Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2017); e, antes de Samuel L. Jackson virar a maior cobaia do estúdio, novamente com Michael Douglas, ao lado de Michelle Pfeiffer, nos primeiros minutos de Homem-Formiga e a Vespa (2018).

    Paralelamente, outras companhias também experimentaram com a técnica, como a Lucasfilm — "prima" da Marvel na família Disney —, que trouxe a Carrie Fisher/Leia Organa de 1977 de volta no encerramento de Rogue One; a Warner, que pegou emprestada uma tática da cartilha da Marvel para abordar o prólogo de Aquaman, rejuvenescendo os pais do herói interpretado por Jason Momoa, vividos por Temuera Morrison e Nicole Kidman; e também a Sony, que se inspirou no processo para "ludibriar" Rick Deckard (Harrison Ford) em Blade Runner 2049 com uma "nova versão" de Rachael (Sean Young), igual à do clássico filme original.

    Retornamos, enfim, à 2019, ano no qual, para além de Capitã Marvel, pelo menos dois outros filmes de largo escopo aproveitarão os benefícios do rejuvenescimento digital para narrar suas tramas: O Irlandês, de Martin Scorsese, e Gemini Man, de Ang Lee. Nos casos dos três longas, a juventude de suas estrelas não é um mero detalhe: é praticamente a condição necessária para que cada uma das histórias funcione. E se Jackson precisa interpretar um Nick Fury dos anos 1990, Robert De NiroAl Pacino surgirão pelo menos quatro décadas mais jovens no próximo épico criminal do realizador de Taxi Driver e O Lobo de Wall Street.

    Já no caso de Will Smith, protagonista de Gemini Man, o astro precisará enfrentar um clone seu, 27 anos mais jovem — Um Maluco no Pedaço —, o que demonstra mais uma forma como o rejuvenescimento digital pode ser utilizado na sétima arte. Assim, seja no âmbito dos blockbusters ou na esfera de atuação de grandes e inovadores cineastas como Scorsese e Lee, a técnica torna-se mais uma ferramenta para abrir possibilidades narrativas múltiplas e, acima de tudo, para contar novas e inéditas histórias, com o auxílio de astros que agora podem ser ainda mais eternizados. Perfeito, não é mesmo? Na verdade, não.

    O motivo para a resposta negativa, apesar das complexidades tecnológicas envolvidas, pode ser resumido de forma muito simples, ainda que "grosseira": carne e osso e píxeis não são a mesma coisa. A despeito da obviedade da constatação, ela é mandatória. Fazer um ator parecer mais novo ou mais velho através do digital não é a mesma coisa que exercer o mesmo processo e alcançar um resultado similar por meio da maquiagem, por exemplo: essa comparação é somente um mero demonstrativo da separação entre os dois métodos, e se ambos são diferentes, também é evidente que suas consequências serão distintas.

    Com a meteórica evolução do processo, que em um espaço de pouco mais de 20 anos entre O Confronto Final e Capitã Marvel atingiu um patamar de excelência impressionante e assustador, já não é tão mais fácil enxergar um conceito da robótica que tem plena relação com a discussão em curso: o do "vale da estranheza" (uncanny valley), hipótese criada em 1970 pelo cientista japonês Masahiro Mori que trata de réplicas humanas que provocam repulsa por sua quase idêntica similaridade às faces que são realmente humanas. Em outras palavras, o mais humano que o humano nos perturba, nos incomoda.

    Mas não vamos nos demorar muito neste ponto, que por si só indica uma questão sobre o que é real e o que é virtual, talvez uma das problemáticas mais importantes na contemporaneidade. Partiremos do vale da estranheza para, sobretudo, estabelecer a distinção entre o digital e o humano — mesmo que nos engane constantemente —, e assim debater o que importa para nós nesta altura: com o avanço cada vez mais rápido e intenso da tecnologia de rejuvenescimento facial, como será impactada a arte da atuação e os atores em si? Como as narrativas serão modificadas daqui para frente? E o que isso diz sobre nós?

    Para os atores, tal processo de rejuvenescimento é uma faca de dois gumes. Para aqueles que já são astros, suas imagens poderão ser utilizadas eternamente — e isto porque nem tocamos ainda no ponto dos atores que já morreram mas que são trazidos de volta à vida, como Peter Cushing em Rogue One. Por outro lado, se você pode recorrer para sempre às mesmas estrelas, como abrir espaço para os novos talentos? Ou, mais ainda: por que recorrer aos atores de carne e osso quando você pode, teoricamente, criar estrelas perfeitas e infalíveis, com base nas estatísticas de gosto e consumo do público, digitalmente?

    A nível de narrativas, se o rejuvenescimento facial pode perpetuar ad eternum a presença de um determinado ator, por que também não poderia estender para todo o sempre a continuidade de uma mesma história, de uma mesma franquia? Em tempos onde a nostalgia é o principal capital, onde fazer referências ao passado é praticamente uma garantia de sucesso — onda de saudosismo esta que Capitã Marvel, aliás, surfa com propriedade —, a tendência parece ser a de repetir, reciclar e permanecer preso aos sucessos e glórias do passado: a tecnologia anda na quinta marcha, mas o cinema segue estacionado.

    Tudo isso desemboca, de uma forma ou de outra, em nossa obsessão contemporânea em desejar duplicar o passado, ou ao menos reaproveitar aquilo que já faz parte da história, o que constitui o problema ético do rejuvenescimento — e da ressurreição — digital. Para que o presente exista, ele necessariamente requer que o passado permaneça (praticamente) onde está. Da mesma forma, a morte é obrigatória para o desenvolvimento da vida — antevendo, aliás, o atual estado das coisas, Robin Williams, em seu testamento, proibiu a utilização de sua imagem por um quarto de século após seu falecimento, em 2014.

    Com o rejuvenescimento e a ressurreição digital, criamos a capacidade de superar o tempo e a morte, ao menos no cinema e nas telinhas — séries como WestworldTwin Peaks fizeram uso da técnica nos últimos anos. Essa não é uma novidade do século XXI, já que a medicina moderna é, afinal de contas, uma forma de tentar ultrapassar essas barreiras que nos tornam humanos, demasiadamente humanos. Mas testemunhar isso em nossos filmes e séries favoritos, por outro lado, é muito mais impactante. E fascinante, é claro e inegável. Paradoxos da arte e da vida contemporânea.

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