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    Festival do Rio 2017: "Eu tenho que encher a tela de cinema de sonhos", diz Walter Carvalho (Entrevista exclusiva)

    Prolífico diretor de fotografia e cineasta lançou o hermético Iran, documentário radical que desafia rótulos e convenções ao retratar o processo de preparação do ator Irandhir Santos para entrar em cena.

    Um corpo ocupa um pequeno espaço no que parece ser o minúsculo cômodo de uma casa. Lá se concentra Irandhir Santos, filmado de costas pela câmera incisiva de Walter Carvalho. O cineasta — que aqui investiga e reverencia o artista como um detetive mais interessado em perguntas do que em respostas — acompanha o processo de preparação do ator para viver o discreto Luzimar no drama Redemoinho, de José Luiz Villamarim, no documentário que desafia rótulos Iran.

    Marcado por subjetividades e com uma proposta estética radical, Iran despontou na competição da Première Brasil como um dos filmes mais herméticos do Festival do Rio até aqui — o que explica a debandada de espectadores durante a sessão do filme no domingo (08), no Cinépolis Lagoon. No dia seguinte (09), em uma sessão-debate no Odeon, com a presença do diretor e da produtora do longa, Lia Gandelman, também esposa do cineasta, o público era mais ávido e instigou conversas sobre a chamada "dilatação do tempo" e as sensações provocadas pela obra, que tem apenas 70 minutos de duração.

    Iran é marcado pelo transe sinestésico de som e imagem fora de sincronia. Com planos longos, a câmera explora a agonia e a solidão que pautam o processo criativo de Irandhir para entrar no personagem. Apesar de ser o tema do longa, o rosto do pernabucano só ganha a tela depois de mais de meia hora de projeção e isso diz muito sobre o filme de Carvalho: Aqui a convenção não tem lugar.

    "Este é um filme onde você não vê a cara do ator até os 34 minutos, você só vê ele de corpo inteiro no final, você não tem ele explicando seu trabalho, você não tem entrevistas com terceiros, não tem entrevistas com preparador de atores", explicou Carvalho em entrevista ao AdoroCinema. "No fundo, esse filme puxa a sensação e a emoção da plateia."

    Encurvado, Irandhir — que, segundo Walter, preferiu não assistir ao filme completo na première — adota uma postura xamânica de um ator na busca de canalizar algo além dele mesmo. A fotografia em preto e branco cria uma atmosfera de mistérios sobre o que se passa na mente daquele homem, que por vezes parece vulnerável, por vezes parece furioso. Sua liturgia é acompanhada dos sons desencontrados que emite enquanto aquece a voz e parece se sintonizar com alguma presença mística. Ou estaria o ator de facetas tão plurais, vistas em grandes filmes como Tatuagem, Febre do RatoAquarius e Tropa de Elite 2, apenas encarnando outro personagem? Questionamentos assim fizeram parte do público se questionar se Iran é mesmo um documentário ou se descamba para o campo da ficção. Não importa. " Ao invés de facilitar a compreensão e a própria divulgação do cinema como um todo, essas classificações só dificultam as coisas", diz Carvalho.

    ODE À CRIAÇÃO ARTÍSTICA

    Dono de uma prolífica e respeitada carreira como diretor de fotografia, Carvalho explicita nos filmes que assina como realizador o seu interesse pela vasta geografia de mistérios da criação artísitca. Na cinebiografia Cazuza - O Tempo Não Pára, codirigida com Sandra Werneck, o alvo foi o transgressor poeta do Barão Vermelho. Em Raul - O Início, o Fim e o Meio, foi vez de explorar a vida do maior roqueiro brasileiro. Em Brincante, o artista mambembe Antonio Nóbrega foi tema. Manter a Linha da Cordilheira sem o Desmaio da Planície aborda a vida do poeta Armando Freitas Filho. Um Filme de Cinema, um de seus trabalhos mais recentes, lança interrogações sobre a própria criação cinematográfica com base em depoimentos de um time de cineastas de peso.

    "Quando Picasso pega no lixo um guidão e um selim de bicicleta, leva para o ateliê dele, junta aquilo e chama aquilo de cabeça de touro, eu acho que ele torna a humanidade mais feliz", comenta Carvalho. "Ele faz com que a humanidade avance a partir daquele gesto dele. Isso é o que me fascina na criação: Quando uma coisa se transforma em outra. Esse é o momento da criação. Isso está nos artistas, em quem se dispõe a criar. Estas pessoas estão vendo o objeto de uma forma que ele não é visto. Ele enxerga um ponto de vista que ninguém enxergou. Que ponto de vista é esse? Isso é o que me interessa."

    Carvalho conta que sua relação com Irandhir Santos começou na produção de Baixio das Bestas, dirigido por Cláudio Assis. A partir da observação do método peculiar de preparação do ator antes de entrar em cena, observado pelo diretor de fotografia em diversos projetos, foi durante a produção de Redemoinho que o realizador decidiu gravar aquele processo, antes mesmo de Santos saber que era filmado. Outra coisa que despertou a curiosidade do cineasta foi o caderno de anotações no qual o ator descontruía o roteiro e inseria seus próprios insights sobre o filme, literalmente recortando linhas e tirando-as de lugar ou contexto. Havia ainda espaço para desenhos expressivos que forneciam mais pistas para o labirinto mental de Irandhir. 

    "Nunca me passou pela cabeça que eu faria um filme sobre um ator", contou o diretor no debate. Sem autorização prévia para filmar, sem pesquisa e sem roteiro, aos poucos o projeto tomou forma e Iran se tornou o que é, com muita naturalidade, explica Carvalho. Para o diretor, se ele investisse em um projeto tradicional, com entrevistas, faria um "filme careta" e não seria capaz de defender sua produção como fez no Odeon.

    "A maneira do Irandhir trabalhar só enriquece o espectador porque ele traz nele um dado que aguça uma percepção não habitual. O espectador, além de interpretar, vive [o filme]. Isso é muito enriquecedor para quem assiste. No debate, o diretor também rejeitou o rótulo de experimental ao longa-metragem. Para ele, Iran é o produto de "anotações" feitas por sua câmera enquanto ele descobria sensações que, articuladas, "deram uma narrativa sobre como uma pessoa constrói para si um personagem".

    O diretor rodou Iran enquanto acumulava a função de diretor de fotografia de Redemoinho e levou "até as últimas consequências" sua estética radical. "Minha ideia é trabalhar no limite onde o risco começa", disse, citando uma poesia. "Eu preciso ir perto de onde eu não tenho equilíbrio. Preciso ir perto de onde o perigo ronda. O perigo daquilo que você não domina. Ali você está perto de descobrir uma coisa que você ainda não conhece. A minha função como pessoa é descobrir o que eu não conheço. Esse filme continua. Eu vou levar algum tempo da minha vida para entender que filme é esse. Que tempo dilatado é esse? Eu vou ser cobrado. Eu já estou sendo cobrado."

    Através de transições estilizadas entre frames fixos, sequências extensas sem cortes e uma rara mensagem verbal ("Silêncio"), o filme tem instigado debates sobre o uso do tempo no fazer cinematográfico. Carvalho defende que "o tempo não tem um norma" e que se interessa pelo "sentido abstrato do tempo", explicando que a obra é fruto de suas visões pessoais. "Esse fruto ainda está verde para ser colhido. Eu tenho muito o que descobrir e entender", contou.

    Quando perguntado pelo AdoroCinema sobre como a estética do filme reflete suas inquietações sobre o cinema, Carvalho foi poético. "Eu acho que eu tenho que encher a tela de sonhos. Se eu encho a câmera de sonhos a tela ficará também cheia de sonhos. Esse é o meu princípio."

    Ame ou odeie, o cinema esfíngico de Iran desperta reações no público que nem sempre são assimiladas de primeira. Esta é a intenção do cineasta. "O amor é assim. A vida é assim. Quando você se apaixona por uma pessoa, você vai desvendando esse amor por uma pessoa ao longo do tempo. As vezes aquilo se acaba. As vezes acontece o fenômeno da entropia e de tanto desvendar aquilo se acaba. A vida é assim. O filme tem que trazer uma carga para o que está por trás daquilo que você já conhece para te atrair para aquilo."

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