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    O Valor de um Homem
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    O Valor de um Homem

    As perversas leis do mercado

    por Bruno Carmelo

    Em 2000, o diretor francês Laurent Cantet mostrou uma família destruída pelas relações de poder dentro do trabalho, em Recursos Humanos. Seu conterrâneo Robert Guédiguian preferiu as ferramentas do melodrama social em As Neves do Kilimanjaro (2011) para mostrar uma comunidade inteira devastada pelo desemprego. Em 2012, o veterano Costa-Gavras filmou com ferocidade as derivas do capitalismo em O Capital, e um ano depois, Martin Scorsese construiu sua versão, repleta de deboche, da especulação financeira em O Lobo de Wall Street. São filmes potentes, mas nenhum deles conseguiu retratar a luta de classes com a mesma simplicidade e poesia que Stéphane Brizé em O Valor de um Homem.

    A narrativa é de um minimalismo impressionante. Temos um único personagem principal e apenas um conflito: Thierry (Vincent Lindon) tem cerca de 50 anos e está desempregado. De classe média baixa, com pouca escolaridade, ele não consegue encontrar trabalho apesar de estar aberto a áreas de atuação muito diferentes. Este é um homem de gestos simples, bastante quieto, mas dotado de senso crítico e dignidade irretocáveis: está fora de questão vender a casa, única posse família, assim como não se pode aceitar o fato que uma longa formação profissional, sugerida por assistentes do governo, não sirva a conseguir emprego nenhum.

    Ele se tornou um homem amargo, hesitante entre denunciar o mundo empresarial e aceitar calado as regras de seu funcionamento. A estrutura narrativa acompanha as tentativas de inserção no mercado profissional: Thierry passa por testes de emprego presenciais, entrevistas por Skype, cursos sobre como melhorar sua postura, sua voz, como demonstrar uma atitude confiante. Estas cenas são pérolas da humilhação cotidiana, repleta de instantes de desconforto de ambas as partes. Ele está sempre sendo julgado, inferiorizado, de modo paternalista e mecânico.

    Stephane Brizé acerta ao tratar estas cenas sem exageros nem maniqueísmo: os profissionais que dispensam Thierry não o fazem por motivos pessoais, nem com algum tipo de prazer sádico, mas por terem sido instruídos a agir assim. Mesmo as tentativas de ajudar, vindas de uma bancária e de um empresário, soam ainda mais humilhantes por tratarem o homem maduro de modo infantil. Tudo é filmado com luz natural, fundos brancos, sem trilha sonora. A montagem é contemplativa, fornecendo o tempo necessário para os dois lados se observarem, se testarem, se provocarem. A duração das cenas é essencial neste projeto, e Brizé continua sendo um exímio cineasta no tratamento do tempo cênico.

    Nenhum destes esforços seria possível sem a presença de um grande ator. Vincent Lindon, parceiro habitual do diretor, está melhor do que nunca: ele constrói perfeitamente as contradições deste homem. Em cada cena, é possível perceber pelos gestos e pelos olhares a opressão sobre o personagem, que se esforça para agradar, mas sem perder sua personalidade. De certo modo, este é um filme sobre pessoas que atuam, obrigadas a reproduzir regras com as quais não concordam. Uma das bases do funcionamento capitalista, afinal, é a capacidade de se reproduzir e se sustentar por si próprio.

    As cenas com a esposa e com o filho deficiente são comoventes sem jamais forçarem as lágrimas. A austeridade é uma postura política e estética: Brizé não pretende embelezar a pobreza (como fez Cidade de Deus, por exemplo), nem seduzir pela piedade (como À Procura da Felicidade). Respeita-se o espectador, acreditando em sua capacidade de adesão por recursos racionais. A evolução da narrativa é linear, mas implacável: quando Thierry consegue um emprego, ele é obrigado a reproduzir as regras da dominação, quando seu filho tenta entrar na faculdade, ele é forçado a competir com colegas, quando tenta vender um trailer, deve aplicar regras de especulação com homens de mesmo poder aquisitivo que ele. O capitalismo, de acordo com este retrato, coloca todos em competição contra todos.

    Stéphane Brizé sempre foi um diretor focado em relações humanas e histórias de amor. Talvez por isso sua abordagem poética tenha funcionado tão bem com o conteúdo político. O Valor de um Homem é uma obra revoltada, mas melancólica, belíssima em sua empatia com cada personagem em cena. É notável que, após conseguir um emprego, a profundidade de campo se reduza, como se Thierry não enxergasse mais os outros ao redor. O homem se torna menor, mais fraco, através da gradação microscópica e certeira de Vincent Lindon.

    A cena final deixa um grito na garganta, uma revolta triste. É excepcional ver a política se tornar poesia, e descobrir um roteiro capaz de enxergar o funcionamento de um sistema com distanciamento, sem atribuir a culpa a indivíduos específicos. Qualquer pessoa que algum dia já se sentiu explorada ou pouco reconhecida em seu emprego vai se identificar com este filme dolorosamente contemporâneo.

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