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    A História dos Blockbusters - Parte 5: Sobre vampiros, avatares e distopias

    E alguns muitos outros bilhões a mais.

    UMA QUESTÃO DE JUSTIÇA

    Em entrevista ao site português À Pala de Walsh, o crítico, diretor e autor Mark Cousins - lembram dele? Ele apareceu em A História dos Blockbusters - Parte 2 -, declarou que a história convencional do cinema é racista, sexista e machista. E ele não poderia estar mais certo. Toda e qualquer história, parafraseando o filósofo Friedrich Nietzsche, é contada pelo ponto de vista dos vencedores - e em uma indústria que até pouco tempo acobertava os hediondos crimes sexuais de predadores e abusadores, as mulheres (principalmente) e as outras minorias tiveram suas vozes abafadas por aqueles (homens brancos) que dominam o cenário. Até aqui, conversamos muito sobre valores, tendências de mercado e ciclos de produção, motivados pelos mais diversos motivos, sejam eles estéticos, culturais e/ou econômicos. Agora, contudo, é chegada a hora de analisarmos em maior profundidade uma questão de "cifras" menos tangíveis do que o orçamento ou a arrecadação de um dado longa-metragem; é hora de falar sobre a representatividade e a diversidade no universo dos blockbusters.

    A primeira e mais clara pergunta não poderia ser outra senão: há representatividade no universo dos blockbusters? E a primeira resposta, tão cristalina e direta quanto a questão que a precede, é simples: não, não há. Pelo menos não em uma escala aceitável. No que se refere à participação feminina nos altos níveis de Hollywood, por exemplo, as estatísticas e os dados coletados pelo Centro de Estudos sobre a Mulher no Cinema e na Televisão, um dos mais conceituados locais de pesquisa sobre o tema, podem nos ajudar a compreender o tamanho continental da problemática. Em 2017, apenas 24% dos papéis principais das 100 maiores bilheterias estadunidenses eram de mulheres - o percentual representou uma queda em relação ao ano anterior, onde as mulheres estrelaram produções em 29% dos casos; vale ressaltar que não estamos entrando nem na seara das mulheres não-brancas, onde o problema da subrepresentação e subjugação é ainda mais dramático e urgente. Outro fator que diz bastante sobre a subrepresentação de minorias em Hollywood é o movimento gerado em torno da #OscarsSoWhite - das redes sociais à mídia tradicional, diversos artistas e celebridades questionaram o fato de que não havia nenhum candidato ou candidata não-branco aos troféus de Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz Coadjuvante. E a situação evidentemente não se restringe ao cinema, vale ressaltar, infelizmente.

    É bem provável, portanto, que tal contexto tenha impulsionado Star Wars: Episódio VII - O Despertar da Força (2 bilhões, segundo filme a ultrapassar tal marca em seu lançamento original após Avatar) ao nível de blockbuster indiscutível e fenômeno cultural. O filme dirigido por J.J. Abrams não só retomou uma das franquias mais populares da história, pausada desde 2005, como também modificou seus próprios paradigmas ao incluir um negro (John Boyega) no seu trio de protagonistas e eleger uma mulher (Daisy Ridley) para assumir o posto de estrela da companhia que sempre coube ao Luke Skywalker de Mark Hamill. É evidente que os haters machistas/racistas tentaram boicotar a produção e até mesmo alguns dos parceiros comerciais da Lucasfilm - comprada pela Disney em 2012 - produziram produtos licenciados sem a presença de Rey. No entanto, a onda de reações negativas é mínima e infeliz quando comparada ao suporte recebido pelo épico; aprovado pela crítica ao redor do mundo e pelo público, O Despertar da Força de quebra conseguiu atrair inúmeras mulheres às salas de cinema - quase metade do público que conferiu a obra no fim de semana de abertura foi feminino, composto majoritariamente por jovens e adolescentes.

    Outro elemento interessante, introduzido anteriormente em Frozen, é a falta de um relacionamento amoroso demarcado. Os roteiristas e os atores já comentaram a possibilidade de Rey desenvolver interesses românticos no futuro, mas o primeiro filme a apresenta inapelavelmente como uma guerreira/heroína relutante e nada mais. Uma das grandes críticas feministas à história do cinema certamente se dá contra o fato de que a maior parte das personagens femininas sempre precisam funcionar em favor ou gravitar ao redor de personagens masculinos para simplesmente existir - testes como os de Bechdel, por exemplo, avaliam a participação das mulheres dentro das narrativas de obras de ficção e determinam se as mesmas são criadas simplesmente para auxiliar/compor o arco narrativo dos personagens masculinos ou não. E em O Despertar da ForçaRogue One (US$ 1 bilhão), primeiro derivado da saga Star Wars e aventura protagonizada por Felicity Jones, o "modelo" exposto acima sofre golpes potentes.

    Decerto, ao olharmos em retrospecto, é possível perceber que os rendimentos brilhantes de ambas as produções coroam os triunfos já conquistados por outras obras também lideradas por mulheres mo mesmo período. É evidente que existiram casos lamentáveis como o do boicote massivo e misógino à Caça-Fantasmas, versão feminina do clássico dos anos 80 e que acabou tornando-se um fracasso nas bilheterias (US$ 229 milhões, menos do que o suficiente para lucrar com margens confortáveis sobre o orçamento de US$ 144 milhões) por causa dos haters; no entanto, os últimos anos também guardaram outros projetos que encontraram bastante felicidade nas bilheterias. Incluídas neste grupo estão as animações Procurando Dory (US$ 1,028 bilhão), Zootopia (US$ 1,023 milhão) e Moana (US$ 643 milhões), todas da Disney, bem como o estrondoso live-action de A Bela e a Fera (US$ 1,2 bilhão); e Esquadrão Suicida (US$ 746 milhões), cuja Arlequina de Margot Robbie tornou-se uma das personagens favoritas dos fãs. 2018, por sua vez, já é marcado pelos êxitos de Cinquenta Tons de Liberdade (US$ 368 milhões) e Tomb Raider (US$ 225 milhões, ainda em cartaz nos cinemas). Mas absolutamente nada é equiparável à Mulher-Maravilha.

    Na verdade, é bastante provável que ainda seja preciso mais tempo tempo para digerir a imensidão do impacto cultural exercido pela obra - mais sobre ela à luz do Universo Estendido da DC no próximo episódio desta minissérie - dirigida por Patty Jenkins (Monster) e protagonizada por Gal Gadot, transformada em estrela instantaneamente por causa de sua performance como a amazona mais famosa da sétima arte. Para além de seu espetacular rendimento (US$ 821 milhões) e de ter quebrado recordes mundo afora, o legado de Mulher-Maravilha deve ecoar de maneiras inauditas - ainda mais profundas do que a potência já demonstrada por esta que a mais bem-sucedida produção feminina da história. Afinal de contas, não é todo filme que faz as pessoas - ou melhor, as mulheres - se emocionarem em cenas de pura ação e guerra, não é mesmo?

    Primeiro filme solo de uma super-heroína e, de quebra, dirigido por uma mulher, a adaptação dos quadrinhos tornou-se o melhor exemplo de uma obra que inspira e empodera mulheres ao redor do mundo. Parcialmente ambientado em um cenário onde as mulheres dominam todo o território - a ilha fantástica de Temíscira -, Mulher-Maravilha colocou uma parcela da população que não está acostumada a ser reconhecida sob os holofotes. É melhor, portanto, deixar uma mulher falar sobre o impacto do longa - com a palavra, a psicóloga e conselheira comportamental estadunidense Clarissa Silva: "As mulheres são historicamente objetificadas ou subjugadas, e o retrato de uma mulher em um papel empoderador é uma subversão desse papel histórico". Por sorte, a linhagem iniciada por Mulher-Maravilha será seguida por obras como Oito Mulheres e um Segredo (dirigida por Gary Ross), Sabre de Prata e Gata Negra (Gina Prince-Bythewood), a adaptação de Mentes Sombrias (Jennifer Yuh Nelson) e Capitã Marvel (Anna Boden e Ryan Fleck), entre outros projetos promissores liderados pelas mulheres - incluindo o próprio Mulher-Maravilha 2 e Frozen 2.

    E há, é claro, o caso do surpreendente Pantera Negra - mais sobre este longa no próximo capítulo. De acordo com executivos da Marvel, Kevin Feige e sua equipe precisaram convencer os parceiros comerciais de que as pessoas veriam, sim, um filme de super-heróis protagonizado por um elenco majoritariamente negro. E o público não só compareceu às salas de cinema como ajudou a construir um verdadeiro fenômeno cultural e político ao redor do longa de Ryan Coogler. Merecidamente, a aventura chegou à marca de US$ 1,2 bilhão arrecadado (a aventura ainda está em cartaz), colocou homens e mulheres negros nos papéis principais interpretando personagens extremamente complexos e profundamente dramáticos e tornou-se o filme mais bem avaliado de todo o Universo Cinematográfico Marvel. É o longa de maior sucesso dirigido e protagonizado por artistas negros na história da sétima arte após quebrar inúmeros recordes de vendas de ingressos e deve, assim como Mulher-Maravilha, inspirar um ciclo de produções similares. A representatividade, no fim das contas, é uma questão de justiça.

    Finalmente, portanto, as histórias protagonizadas por minorias estão derivando suas próprias tendências no universo dos blockbusters - ainda que aos poucos e que muito ainda precise ser concretizado, como a cirúrgica e profunda análise As mulheres em Hollywood, um passo de cada vez, bem aponta. Isso não quer dizer, porém, que Hollywood tenha voltado seu olhar para os públicos subrepresentados por bondade - a esfera capitalista nunca permitiu sentimentos puros, vale lembrar. No mercado, tudo que pode ser vendido, será - foi uma questão de tempo, ainda que muito, para que a indústria percebesse que produções voltadas para os grupos minoritários poderiam ser comercialmente viáveis. Vale lembrar que um estudo de 2016 indicou que mais da metade dos consumidores de cinema nos Estados Unidos eram mulheres - o que certamente torna sua subrepresentação nas telonas ainda mais frustrante. Assim, como não lucrar enormemente quando os filmes falam diretamente para parcelas significativas do espectro de fãs da sétima arte? Mas esqueçamos o dinheiro: o que é importante para nós neste momento - supondo que ninguém do outro lado da tela seja um executivo das majors de Los Angeles - é que benefícios sociais reais podem ser acarretados através dos blockbusters.

    E isso já é um feito e tanto.

    O QUE SOBROU PARA DIZER

    Às vésperas de iniciarmos nosso debate sobre a tendência dos universo cinematográficos, o desenvolvimento dos super-heróis nas telonas e o império da Marvel/Disney, vale, ao menos, citar as outras enormes produções que dominaram as bilheterias em 2016 e 2017. Do grupo das mais "veteranas", destacam-se Pets - A Vida Secreta dos Bichos (US$ 875 milhões); Animais Fantásticos e Onde Habitam (US$ 814 milhões, primeiro spin-off de Harry Potter); o inesperado Deadpool (US$ 783 milhões), que provou que proibir a entrada de menores de 18 anos não mata potencial comercial algum; Sing - Quem Canta Seus Males Espanta (US$ 634 milhões); o chinês As Travessuras de Uma Sereia (US$ 533 milhões); Kung Fu Panda 3 (US$ 521 milhões); e La La Land (US$ 446 milhões).

    Não se pode passar por 2017 sem mencionar Star Wars - Os Últimos Jedi (US$ 1,3 bilhão); Velozes & Furiosos 8 (US$ 1,2 bilhão); Meu Malvado Favorito 3 (US$ 1 bilhão); Jumanji: Bem-Vindo à Selva (US$ 946 milhões); mais um chinês, Wolf Warrior 2 (US$ 870 milhões); Piratas do Caribe 5 (US$ 794 milhões); It - A Coisa (US$ 700 milhões), pináculo do cinema de terror, que nos últimos anos também contou com os blockbusters do Universo Invocação do MalLogan (US$ 619 milhões), emocionante despedida de Hugh Jackman do papel de Wolverine; Transformers 5 (US$ 605 milhões); Kong: A Ilha da Caveira (US$ 566 milhões); e a animação O Poderoso Chefinho (US$ 500 milhões).

    E agora, o momento pelo qual todos esperavam: a trajetória da Marvel e dos universos cinematográficos. A seguir, na derradeira parte de A História dos Blockbusters.

    (continua)

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