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    O Oscar de Melhor Filme Popular, ou como o desespero da Academia mudou as regras do jogo (Análise)

    "Por favor, senhora Marvel e senhora DC, pelo amor de Meryl Streep, será que vocês podem comparecer à nossa festa?

    Kevin Winter

    A história de Hollywood, assim como a da maioria das indústrias, é um conto de mutação. Seja por causa de um desenvolvimento tecnológico, por um contexto político ou pela pura força criativa de um visionário, a máquina do cinema estadunidense é um organismo em constante processo de mudança interna - nem sempre evolutiva, diga-se de passagem.

    Tal frequência de variações e câmbios impacta todos os planetas que orbitam ao redor de Hollywood - ou seja, a indústria de produção e distribuição de longas-metragens -, o sol do sistema audiovisual norte-americano. Isso inclui, além da imprensa em geral, de certos aspectos da política e de outras mídias culturais, o glamuroso universo particular das cerimônias de premiação, que sofreu a reviravolta inesperada da já famigerada categoria “Melhor Filme Popular” do Oscar.

    Eufemismos caberiam aqui, mas a própria Academia escancarou sua fragilidade e sua potencial irrelevância ao inventar um “prêmio de consolação” para os blockbusters; retirar da exibição televisiva as entregas de estatuetas para determinadas categorias técnicas; e esconder, por fim e de vez, o trabalho de profissionais que normalmente já não são reconhecidos pelo público em geral. Em 2019, a cerimônia do Oscar, com suas três horas cronometradas, poderá ser resumida em um apelo melancólico e infantil: “por favor, senhora Marvel e senhora DC, pelo amor de Meryl Streep, será que vocês podem comparecer à nossa festa? Vai ter bolo e, quem sabe, um prêmio de consolação.”

    Para incluir os bilionários blockbusters do momento - e consequentemente atrair os espectadores que são fãs destas obras -, bastava que os acadêmicos eliminassem seu preconceito. Ainda que tenha perdido certa credibilidade durante os anos após algumas vitórias duvidosas - estamos falando com vocês, Crash - No LimiteGwyneth Paltrow -, o Oscar jamais deixou de chancelar e concretizar a qualidade de inegáveis grandes obras do cinema estadunidense. Simplesmente ser credenciado à disputa através de uma sonhada nomeação já é um testemunho da relevância de um determinado filme ou artista.

    Por outro lado, não é de hoje que a Academia estabeleceu, ainda que não oficialmente, um padrão a ser seguido. Os filmes de super-heróis são apenas os novos integrantes de uma extensa lista de produções esnobadas que, por sua vez, abre todo um catálogo de artistas injustiçados - como Alfred Hitchcock e Stanley Kubrick, para citar apenas dois nomes. Não é um drama de orçamento moderado, bilheteria respeitável, estrelado por astros estabelecidos ou atores que surpreendem e dirigido por um queridinho da Academia? Considere-se fora do jogo. Agora, se for um filme histórico, um épico de guerra ou uma cinebiografia, de preferência daquelas bastante melodramáticas, as chances de uma indicação - e de uma vitória - aumentam vertiginosamente.

    Terror, ficção científica, comédias, super-heróis. Todos gêneros historicamente descartados pela maior premiação estadunidense. Mas é aqui que mora o problema: são os filmes dos tipos supracitados que geralmente levam os espectadores às salas de cinema. Vamos aos números, com a ajuda dos índices do Rotten Tomatoes: Até o Último Homem, indicado a 6 Oscar, incluindo ao troféu de Melhor Filme, em 2017 e com 86% de aprovação da crítica, arrecadou US$ 67 milhões nos Estados Unidos; Deadpool, comédia/filme de super-heróis feito para uma audiência restrita e com 83% de aprovação no RT, obteve US$ 383 milhões em solo doméstico... e zero nomeações.

    O jogo, portanto, virou. Por que razão um fã veria, e consequentemente validaria, uma cerimônia que não se importa com seu filme favorito? Não faz sentido algum, não é mesmo? Enquanto os mega estúdios batem recordes bilionários de arrecadação a cada ano, o Oscar registra quedas significativas de audiência: 40% de perda de público de 2016 para 2017 é mais 20% do ano passado para 2018. Tal cenário de pânico generalizado forçou a barra para os acadêmicos; obrigados a reconhecer a derrota, surgiu a brilhante ideia: a criação da categoria de Melhor Filme Popular.

    Como se a descabida disputa não fosse absurda o suficiente por si só, o quadro é agravado quando é introduzida a verdadeira responsável por ditar o novo andamento da partida: a ABC, rede de televisão que tem contrato de exclusividade para transmitir a cerimônia do Oscar até 2028. Assim, além de terem sucumbido à pressão do mercado como nunca antes, os acadêmicos tornaram-se reféns de uma emissora de tv... que é vinculada à Disney! Exato, o buraco é bem mais embaixo do que parecia ser.

    Outro desenrolar preocupante da medida se dá por causa dos filmes em si. Em 2019, Pantera Negra será elegível. De acordo com as previsões dos analistas, o longa estrelado por Chadwick Boseman, por toda sua qualidade e por causa do fenômeno cultural e político que gerou, poderia ser nomeado às principais categorias. Entretanto, não é difícil enxergar um cenário em que o novo troféu elimine as chances da obra de Ryan Coogler em qualquer categoria que não a de Melhor Filme Popular, como uma espécie de "prêmio de consolação" ao invés do reconhecimento que mereceria alcançar. Ou seja, cria-se um gueto onde blockbusters até levariam sua estatueta para casa, mas seriam tolhidos de ir além disto.

    O preconceito histórico da Academia privou o reconhecimento de inúmeras obras, que evidentemente teriam atingido outros patamares com uma indicação ao Oscar. De fato, não existem motivos concretos para que blockbusters, filmes de terror, comédias e ficções científicas fiquem de fora da cerimônia. A Academia premia, em teoria, os melhores produtos recentes do cinema estadunidense, não os melhores filmes dramáticos feitos para te fazer chorar - ou os Oscar bait, os filmes “isca de Oscar”, em tradução livre. É preciso que haja espaço para todo tipo de produção cinematográfica e, acima de tudo, sem manobras regulamentares.

    As ocorrências podem ser raras, mas não são inexistentes. Por mais que fujam aos padrões tacitamente estabelecidos pela Academia, títulos como Guerra nas Estrelas, Os Caçadores da Arca Perdida, E.T. - O ExtraterrestreTubarão e os três capítulos da trilogia O Senhor dos Anéis foram nomeados ao Oscar de Melhor Filme, e isto na época em que eram apenas cinco vagas. E isso sem contar com todas as indicações que estas megaproduções receberam e com todos os outros blockbusters que também alcançaram ou venceram categorias de prestígio na premiação da Academia - como é o caso dos recentes Corra! (Melhor Roteiro Original) e Logan (indicação à categoria Melhor Roteiro Adaptado, primeiro filme de super-heróis a concretizar a façanha).

    A medida imediatista da Academia, tomada por pressões externas, não só separa ainda mais os dois mundos do universo cinematográfico estadunidense, como também fere os princípios que fundamentaram as 91 edições do Oscar até hoje. No fim das contas, a categoria Melhor Filme Popular pode representar um tiro no pé inesquecível por seu caráter de "muleta"; por mais que a entrega dos troféus da Academia sempre tenha gerado sua parcela de discordâncias, o Oscar jamais foi um "concurso de beleza". Se o evento atingiu um patamar tão alto, é porque os acadêmicos sempre prezaram, de uma forma ou de outra, pela excelência dos concorrentes, sejam eles filmes de arte ou os mais lucrativos blockbusters da história.

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