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    Mostra de Tiradentes 2016: Nossa análise final da 19ª edição

    Algumas ideias sobre a seleção de filmes, os temas recorrentes e a qualidade dos debates.

    Leo Lara / Universo Produção

    [Atualização, fevereiro de 2016: Após a publicação deste artigo, o curador da Mostra de Tiradentes, Cleber Eduardo, precisou que a Mostra Aurora sempre permitiu a seleção de longas-metragens de diretores com até três filmes no currículo, o que justifica a inclusão de Índios Zoró - Antes, Hoje e Agora?. De mesmo modo, Urutau não poderia fazer parte da Mostra Aurora por ter sido exibido previamente na Semana dos Realizadores, enquanto a seleção competitiva de Tiradentes exige ineditismo.]

    Com a entrega do prêmio do júri da crítica ao longa-metragem Jovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não é um Urso que Dança e ao curta-metragem Noite Escura de São Nunca, a 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes chegou ao fim. Foram nove dias repletos de experiências intensas, boas trocas de ideias e dezenas de filmes de todos os tipos - alguns ótimos, outros fracos, como se pode esperar de uma seleção ousada como esta.

    Mas chegou a hora de pensar no festival como um todo. Abaixo, nós destacamos os principais elementos que chamaram a nossa atenção durante esta edição da Mostra, sem nenhuma ordem específica:

    1. Da cidade à floresta

    A temática dos Espaços em Conflito, que norteou a curadoria este ano, trouxe diversos filmes sobre deslocamentos e tensões entre regiões. Mas talvez a transição mais comum tenha sido a passagem de indivíduos urbanos (jovens adultos, particularmente) para a natureza, com ênfase ao espaço da floresta fechada e selvagem.

    Em Através da Sombra, uma professora da cidade descobre os horrores do campo - assim como os jovens descolados do filme de terror O Diabo Mora Aqui, a mulher amargurada de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós e o casal problemático de Planeta Escarlate. O homem de roupas sociais em O Espelho encontra uma mulher sedutora na floresta, enquanto o casal de Garoto vive um romance no meio das árvores. Para se concentrarem, as adolescentes urbanas de O Que Queremos Para o Mundo? treinam sua música numa casa de campo. Mesmo a vaca de Animal Político abandona a cidade pelo deserto. Alguns filmes inclusive representam o interesse de cineastas da cidade pelos ambientes rurais, como Aracati.

    As noções de clausura e libertação já foram muito representadas no cinema nacional pela dicotomia sertão-mar. Pelo menos neste ano, a tensão ocorre entre a cidade e a natureza, vista como elemento de pureza, misticismo e mistério, contra a alienação urbana. As grandes cidades, aliás, são vistos como fruto de experiências perversas (vide as paredes de concreto em Urutau e as derivas da especulação imobiliária em Banco Imobiliário). 

    2. Experimental? Poético?

    Muitas produções foram caracterizadas, no catálogo e pelos frequentadores da mostra, como "experimentais", "poéticas", mas foi comum ver diretores que rechaçam estes termos. Numa entrevista com Aline Portugal e Julia De Simone, diretoras de Aracati, ambas recusam o selo que lhes parece redutor. Thiago B. Mendonça também prefere destacar o aspecto ativista de Jovens Infelizes e sua estética da marginalidade a recair na ideia de uma produção "poética". Mesmo Andrea Tonacci não se sente confortável com estes termos, que caminham a um esvaziamento de sentido para as novas gerações.

    O fato é que os tiques associados ao cinema independente e experimental, especialmente americano, têm sumido destas produções: não se vê a câmera na mão, tremendo, o sentimento de urgência na filmagem ou o fetiche da marginalidade. Pelo contrário: a maioria dos filmes permite a contemplação e a dilatação do tempo - elementos percebidos atualmente como radicais, talvez pela velocidade pop do cinema comercial. Em termos literais, poucas produções de Tiradentes apresentam uma real experimentação da linguagem. Talvez O Espelho e Tropykaos possam ser chamados de experimentais, mas a manipulação estética não constitui uma finalidade em si.

    3. Caminhos da distribuição

    A sala de cinema sempre foi o espaço de maior status para a apresentação de filmes. No entanto, com o circuito cada vez mais saturado de blockbusters e produções de arte "de luxo" (ou seja, os títulos que se destacaram em festivais como Cannes, Berlim e Veneza), muitos diretores de filmes independentes admitem a possibilidade que seus filmes nunca passem em circuito comercial, incluindo Thiago B. Mendonça, cujo primeiro longa-metragem, Jovens Infelizes ou um Homem que Grita Não é um Urso que Dança, venceu o prêmio máximo da Mostra.

    Na era de mudanças tecnológicas, os cineastas engajados acreditam que seu público talvez esteja na Internet, ou nos pequenos festivais, cineclubes e canais de televisão como o Canal Brasil, TV Brasil e afins. A distribuição em salas, para obras exigentes como Aracati, Animal Político e Urutau, pode ser um caminho longo, caro e de recompensa limitada: muitos destes títulos desaparecem das salas em duas ou três semanas, espremidos pela pressão de produções maiores.

    4. A arte do debate

    A Mostra de Tiradentes sempre foi conhecida por oferecer debates aprofundados e polêmicos, mas em 2016, a maioria das discussões foi sucinta e de teor protocolar. O formato, infelizmente, não ajuda: com apenas uma hora de debate, incluindo apresentações, debates com críticos, comentários da equipe e perguntas da plateia, sobra pouquíssimo tempo para que as questões sejam aprofundadas. Quem sabe com duas salas simultâneas, os debates pudessem se alongar e se desenvolver mais.

    As únicas controvérsias surgiram de ofensas pessoais proferidas ao longo do debate do filme Jonas. O filme de Lô Politi foi acusado de racismo, por trazer uma personagem negra manipulada pelo protagonista branco. Tropykaos também foi acusado de segregação racial, por conter um protagonista branco que afirma não estar "geneticamente" equipado para sobreviver ao calor de Salvador. Já Aracati foi questionado pelo retrato supostamente condescendente do sertanejo. Que esses questionamentos tenham fundamentos ou não, pelo menos eles demonstram uma preocupação crescente com a representação ética das minorias sociais.

     

    5. O peso da autoria

    Para o bem ou para o mal, Tiradentes aplica de modo ostensivo uma política dos autores em moldes franceses. A Mostra Aurora, dedicada valorizar a diretores em início de carreira, não constitui exatamente uma sessão de descoberta de novos talentos, por contar com veteranos do curta-metragem, quase todos com passagens prévias pela Mostra. A intenção de valorizar personalidades é tão grande que a seleção competitiva da Aurora, normalmente restrita a diretores com até dois longas no currículo, foi expandida para três longas, na provável tentativa de incluir Índios Zoró - Antes, Hoje e Agora?, do veterano Luiz Paulino dos Santos. O filme é fraquíssimo, mas a presença expansiva e simpática do diretor garantiu uma recepção favorável pelo público.

    É bom destacar que a 19ª edição manteve boa abertura ao cinema de gênero, numa leitura mais contemporânea dos traços autorais. Filmes de terror (O Diabo Mora Aqui, ou mesmo Clarisse) e suspense (Através da Sombra) conviveram com fantasias de ficção científica (Tropykaos, Planeta Escarlate), sem falar na boa safra de comédias - gênero normalmente excluído do circuito autoral convencional.

    6. Índios, sequestro e outros temas

    Com tantas produções guiadas por um recorte único, é de se esperar que alguns temas encontrem afinidades entre si. Por exemplo, esta edição trouxe três documentários sobre comunidades indígenas, todos oferecendo um olhar contemporâneo a massacres e violências de décadas atrás. São eles Serras da Desordem, Taego Ãwa e Índios Zoró - Antes, Hoje e Agora?. O tema da Síndrome de Estocolmo também apareceu em duas produções muito diferentes sobre sequestro de jovens: Jonas e Urutau.

    Curiosamente, o retrato aprofundado da sexualidade e dos atos sexuais foi raro nas produções selecionadas. O tema esteve presente, é claro, em Jovens Infelizes e Clarisse, mas o conjunto de obras preferiu lidar com o tema da repressão sexual e do mal-estar individual em relação ao corpo - caso das relações desconjuntadas de Tropykaos, da união melancólica de Filme de Aborto, da transa fora de quadro e seguida de assassinato em Garoto e do estupro em Urutau.  

    7. Aurora, Transições

    Teoricamente, a Mostra Aurora é dedicada a jovens diretores de olhar bem estabelecido e formado ao longo da carreira, enquanto a Mostra Transições destaca exercícios não plenamente bem sucedidos, mas promissores quanto às obras futuras de seus realizadores. A distinção é ampla e se presta a debates e gostos pessoais, mas em 2016, seria difícil entender como um filme totalmente desconexo como Filme de Aborto, e outro idealista e amador como Índios Zoró puderam participar da Aurora, enquanto os belos e maduros A Noite Escura da Alma e Urutau foram incluídos na Transições.

    Pelo menos, foi ótimo ver filmes infantis de qualidade no festival, como O Que Queremos Para o Mundo?. Os únicos títulos realmente deslocados da programação foram as obras associadas à Globo Filmes (Através da Sombra, Prova de Coragem) e à Record Filmes (Jonas). São grandes produções, duas delas com efeitos especiais e todas as três com atores famosos de telenovelas. Trata-se de filmes "de grife", mas com roteiro fraquíssimo e ausência de um olhar minimamente inovador. 

    Leo Lara / Universo Produção

    8. Mulheres na direção

    Os filmes brasileiros dirigidos por mulheres são raros, mas Tiradentes destacou diversos trabalhos de cineastas mulheres. Aracati, de Aline Portugal e Julia De Simone, Futuro Junho, de Maria Augusta Ramos, Campo Grande, de Sandra Kogut e Taego Ãwa, de Marcela Borela (junto de Henrique Borela) foram algumas destas produções, sem falar na grande presença feminina entre os curtas-metragens selecionados.

    Curiosamente, apenas Campo Grande destaca a história de mulheres. No caso dos documentários Futuro Junho, Aracati e Taego Ãwa, o interesse está em noções coletivas que ultrapassam a questão do gênero. A diversidade esteve presente mais atrás das câmeras do que na frente das câmeras. Mesmo assim, vale ressaltar filmes como Jovens Infelizes e Clarisse, dirigidos por homens, mas lidando diretamente como protagonistas femininas.

    Leo Lara / Universo Produção

    9. Onde está a política?

    Os maiores festivais brasileiros de 2015, como Brasília, Ceará e Pernambuco foram marcados por protestos políticos, com diversos diretores jovens utilizando a oportunidade de falar ao público para se pronunciar contra projetos indesejados dos partidos conservadores ou a repressão policial nas ruas. Num momento delicado politicamente, Tiradentes teve a política ausente dos discursos, mesmo com a presença polêmica do governador de Minas Gerais na abertura do evento, pouco tempo após a crise política e ambiental envolvendo a Samarco.

    "Fazer cinema independente já é um gesto político", lembram as cineastas de Aracati, num argumento válido. A política também esteve presente nas telas, pelo discurso contra o crescimento desordenado das cidades (em Banco Imobiliário), contra a proibição do aborto (em Filme de Aborto), contra o massacre de índios (em Serras da Desordem, Índios Zoró e Taego Ãwa) e contra a opressão feminina (em Jovens Infelizes).

    Mas assim como nas plataformas tradicionais de autoria, o foco esteve na figura do autor, do cineasta, e não exatamente nos temas abordados por ele. Não é de se espantar que, na apresentação das equipes antes das projeções, o microfone seja passado imediatamente ao diretor, cercado de diversos colegas, e que as placas de homenagem às equipes também sejam entregues às mãos dos diretores. A autoria, afinal, constitui um universo bastante individualizado. Felizmente, o vencedor do festival foi justamente Jovens Infelizes, a obra mais politizada da seleção.

    10. A decepção com os grandes

    Cineastas consagrados como Ruy Guerra, Júlio Bressane e Walter Lima Jr. tiveram novos filmes exibidos em Tiradentes, mas nenhum deles compareceu ao evento para representar as obras e debater com o público. A idade avançada justifica muitas destas ausências, mas talvez se possa cogitar a possibilidade que estes filmes simplesmente não constituam passos importantes na filmografia de seus criadores: Quase Memória, Garoto e Através da Sombra foram recebidos sem entusiasmo pela plateia. 

    No caso dos dois primeiros, representam obras interessantes, mas muito próximas de outros trabalhos que já os autores fizeram recentemente, e com mais vigor. Através da Sombra marca uma experiência nova para Walter Lima Jr., que se arrisca no suspense/terror, mas com evidente desconforto no que diz respeito às regras no gênero e à construção do clima sombrio. Neste contexto, os cineastas que brilharam foram os nomes da nova geração: Tião, Thiago B. Mendonça, Henrique Dantas, Bernardo Cancella Nabuco etc.

    Críticas da 19ª Mostra de Tiradentes

    Animal PolíticoAracatiAtravés da SombraBanco ImobiliárioClarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós DoisO Diabo Mora AquiO EspelhoFilme de Aborto

    Futuro Junho

    GarotoÍndios Zoró - Antes, Hoje e Agora?

    InvasoresJonasJovens Infelizes ou Um Homem que Grita Não é um Urso que DançaA Noite Escura da AlmaPlaneta EscarlateO Que Queremos Para o Mundo?

    Quase Memória 

    Taego ÃwaTropykaos

    Urutau

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