Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Pecadores

Após Pantera Negra e Creed, Ryan Coogler mistura terror e drama com Michael B. Jorndan em melhor filme da carreira

por Diego Souza Carlos

São poucos os filmes que, tomados pela ambição de um cineasta, conseguem esbanjar grandes ideias combinadas a recursos cinematográficos originais. Ainda mais difícil é assistir a um longa que prenda a atenção de maneira tão irresistível que chega a ser difícil desviar o olhar. Ryan Coogler é conhecido por conseguir atingir estes picos em sua breve e potente filmografia. No entanto, Pantera Negra e Creed apenas o preparam para esbanjar todo o seu amor pelo cinema com Pecadores.

Na trama, Michael B. Jordan interpreta irmãos gêmeos que voltam à sua cidade natal com o objetivo de reconstruir a vida e apagar um passado conturbado. Esses acontecimentos, porém, voltam a atormentá-los quando uma força maligna passa a persegui-los, trazendo para a superfície medos e traumas.

Esse mal busca tomar conta da cidade e de todos os cidadãos, obrigando-os a lutar para sobreviver. Mais do que contornar os demônios dominadores e famintos por poder (e sangue), eles terão que lidar com as lendas e os mitos ameaçadores que podem estar por trás desse terror.

Assim como em Pantera Negra, Ryan Coogler segue construindo mundos

Warner Bros.

Esqueçamos por um momento a ideia de que um longa-metragem precisa de completude. Se na vida nada é assim, dificilmente uma obra de arte será redondinha. É justamente por ser intenso e cheio de vontades que Pecadores se torna uma peça importante para o cinema contemporâneo. Imperfeito e cheio de estilo, Coogler consegue estabelecer uma dança que flerta com diferentes gêneros, aproveitando o melhor de cada um.

Nos primeiros segundos, o público já é pego de surpresa com flashes de grandes momentos do longa: aqui, muitos podem pensar que os jumpscares vão dominar a narrativa, mas é preciso pagar para ver já que essa escolha é, no mínimo, ousada. A fé, a música e a religião sublinham as primeiras linhas do enredo: somos inseridos em um mundo que, embora tenha os pés fincados em uma dura realidade, é ciente de uma cultura que vai além da mortalidade.

Ali, vemos uma comunidade de pessoas negras em 1932 que, embora sejam livres, ainda trabalham e cultivam sob a herança da escravidão. Com as Leis de Jim Crow, o fim da segregação racial ainda é uma lenda e, assim como na América Latina a abolição não foi sinônimo de liberdade imediata, todos seguiram sem amparo.

Warner Bros.

Passada a introdução, há espaço para dois pontos que devem ser celebrados neste novo capítulo da filmografia do realizador: seu tratamento plural para personagens em cada nível de importância na história é louvável - não importa se terão apenas uma única cena ou farão parte do filme inteiro, todos parecem fazer parte de um sistema vivo, tem suas personalidades e fazem parte daquele mundo.

Isso só aumenta a atmosfera do que vemos em tela, o que nos leva a outro mérito: não apenas em filmes de terror, mas qualquer tipo de abordagem ganha muitos pontos quando o público consegue se aproximar dos personagens e, pasmem, se importar com eles.

A música, a fé e o pecado

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Embora os gêmeos de Michael B. Jordan sejam um grande destaque de Pecadores, o verdadeiro protagonista da trama é Sammie Moore, interpretado brilhantemente por Miles Caton. Filho de um pastor, ele vive o dilema entre seguir os trabalhos de Deus, como o pai, e se entregar ao seu grande talento musical.

Interpretados pelo astro de Creed, os primos do personagem retornam depois de um tempo distante. Agora ricos e conhecidos por sua fama de gângsters, eles decidem abrir um juke joint, uma casa de blues exclusiva para o público negro. Saindo do área rural em alguns dos takes mais bonitos do cinema atual, com belas paisagens e sequências que engrandecem o relacionamento entre eles, sentimos a cada parada que o mal está à espreita.

A dinâmica entre este trio é o que guia toda a narrativa. Ao mesmo tempo em que os gêmeos representam um passado recheado de pecados, o jovem representa a pureza imaculada. Ele é tentado para todos os lados, mas está fadado a enfrentar esta decisão de maneiras bem intensas ao longo da trama.

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Neste sentido, a música se faz presente em todos os instantes: ela é utilizada para levar os personagens por uma viagem nostálgica, é motor de momentos de lazer ou pode ser um convite para uma dança com o diabo, mas também representa esperança em um momento de dor. Essas entradas são embarcadas por uma trilha sonora repleta de canções que jogam a narrativa para frente, enquanto envolvem o público de uma maneira que apenas a sonoridade pode fazer.

Aqui, o realizador consegue estabelecer ótimas sequências, mas há uma em especial que provavelmente vai encher os olhos de muitos diante da tela. Como um veículo de laços para além da vida, Sammie manifesta o melhor do seu dom musical durante a abertura da casa de blues.

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Utilizando uma mixagem de sons, que vão desde batuques ancestrais ao flow do rap e batidas eletrônicas, uma festa espiritual é lançada na tela. Um lembrete de que muito do que a música se tornou, com o rock, o jazz, a disco, o funk, entre outros, veio de artistas pretos.

É como assistir ao encontro das três existências - do passado, do presente e do futuro -, a partir da música, que foi, é e sempre será um ato de resistência para povos oprimidos. O que nos leva a pensar o quão complexa pode ser a ideia do pecado, principalmente quando algo que pode nos levar a ele também é tão cheio de vida e proteção.

Terror e drama histórico guiados por vampiros, blues e sacrifícios

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Ao lado da diretora de fotografia Autumn Durald Arkapaw (Pantera Negra: Wakanda Para Sempre), Ryan realmente se esforçou para que sua obra atingisse diferentes camadas de originalidade. O uso do formato anamórfico consegue capturar sequências mais abertas com riqueza, com o auxílio do IMAX de quadro completo que enriquece o tecido visual.

Além disso, para reproduzir a ambientação dos anos 1930, o cineasta filmou o projeto em película, oferecendo um aspecto orgânico e granulado. Tudo isso combinado com um bom trabalho de iluminação que consegue expressar na tela a vibração e as diferentes tonalidades da pele de cada personagem.

Ao manejar um contraste inspirado nos grandes clássicos de terror, somado a influências múltiplas do gênero, Coogler consegue criar uma obra única. Toca no pitoresco do cinema trash, abraça o suspense corriqueiro e ainda evoca toda a energia de um slasher em poucos minutos. Enquanto brinca com as regras da mitologia sobrenatural, efeitos especiais, que deram olhares sanguinários aos vampiros (e farão Michael B. Jordan ser desejado duplamente) são muito bem executados ao lado dos efeitos práticos, que uniram o gore com a típica decomposição de filmes de monstro.

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Há tropeços na condução do longa, mas estes estão vinculados à montagem: no terceiro ato, existe uma dificuldade em mudar um pouco de tom para abraçar o clima de terror. Há muitas vontades que nos guiam por esse longa tão rico, que se beneficia da direção e das atuações. Pelo excesso, pode ser que algumas coisas não funcionem plenamente, mas ainda assim é impossível desviar o olhar.

Entre religião e resistência racial, Ryan Coogler brinca com seu amor pelo cinema. Instiga o drama histórico e o romance com brilhantismo, demonstra todo o poderio feminino com performances grandiosas (palmas para Wunmi Mosaku!), desvia de clichês do terror tanto quanto os aceita e ainda oferece uma ode à espiritualidade e à negritude. Tudo isso sem deixar de entregar sequências dignas de um bom e velho thriller de ação.

É um tipo de filme que faz com que você se lembre do porquê adoramos cinema. Tem seus tropeços de ritmo, mas é nítido (e delicioso) como transborda tesão pela sétima arte. Engraçado, sexy, amedrontador e dramático, não há muito mais o que dizer além de que Pecadores é um evento cinematográfico!

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