Com trilha sonora excepcional, cinebiografia de Ney Matogrosso mergulha na beleza e no poder da autenticidade
por Aline PereiraAssim que a sessão de Homem com H terminou, a entrevista coletiva realizada para a imprensa, da qual o AdoroCinema fez parte, trouxe a informação de que quase 18 milhões de reais foram investidos na produção do filme que retrata a vida e obra do icônico Ney Matogrosso. Imediatamente, pensei “dá para ver”. O longa dirigido por Esmir Filho (Boca a Boca) é assim: dá para ver, com clareza, não só os expressivos recursos financeiros, mas a preparação elaborada e cuidadosa de uma história contada com a suntuosidade que marca a persona do cantor.
Em Homem com H acompanhamos a trajetória de Ney Matogrosso, interpretado com voracidade e muitos olhares por Jesuíta Barbosa, desde a infância marcada pelo conflito com o pai rígido. Em um dos primeiros momentos do filme, o militar Antônio Matogrosso (Rômulo Braga) afirma que não vai “criar filho para ser artista”. Bem, não poderia estar mais errado. Ao longo de uma das carreiras mais longevas da música brasileira, Ney se tornou um multiartista.
A partir de uma rebeldia convicta e voz inconfundível, o Homem com H nos leva pelo caminho dele atravessado pela ditadura militar, pela trajetória breve, mas intensa, da banda Secos & Molhados e pela terrível epidemia de HIV que tirou dele grandes amores. Tudo isso acontece – e é o mais impressionante – sem que ele deixe de ser quem é, de seguir a própria natureza. Esmir Filho escolhe, aliás, criar bons paralelos entre homem e bicho para nos apresentar um protagonista que é feroz, mas também terno, cheio de instintos, mas também engenhoso.
Na mesma entrevista após o filme, Ney Matogrosso nos contou que já foi alvo de inúmeras mentiras contadas a seu respeito ao longo de seus mais de 80 anos e que, se fosse para virar filme, “precisava ser tudo verdade”. Uma missão que, para ele e para quem assiste, parece estar cumprida. Sem o clima notoriamente “chapa-branca” que costuma ser ponto negativo de uma longa lista de cinebiografias (já chega de citar Bohemian Rhapsody?), a obra toma suas licenças poéticas para contar, ainda que dentro de muita linearidade, sua história sem perder o fio da realidade.
O resultado, então, é um personagem que transmite sua mensagem e que, sobretudo, faz entender por que Ney Matogrosso é um artista tão relevante. No fim, ficou comigo a sensação de que ser autêntico e fazer as próprias regras (para quebrá-las depois, vai, por que não?) pode até ser doloroso às vezes, mas cria uma vida que merece ser bem vivida. Ser fiel a si, mesmo quando todo o entorno parece ser de obstáculos, cria caminhos fantásticos. É impossível não torcer, não se inspirar e não querer saber ainda mais.
Além da relação difícil com o pai na juventude, Homem com H também procura explorar relacionamentos que marcaram a vida de seu protagonista. É nesse contexto que surge, primeiro, Cazuza (Jullio Reis). É curioso vê-lo aqui como uma espécie de coadjuvante (e que esquisito se referir assim a ele): ainda que tenhamos outras representações do artista no cinema, aqui o vemos pela perspectiva de um grande amigo, parceiro e amor. Através do olhar de Ney, Cazuza aparece em seus momentos mais dóceis e mais tempestuosos, tornando-o um personagem que, ainda que não tenha tanto desenvolvimento em tela, carrega um peso importante e movimenta trama.
Mais ou menos o mesmo serve para Marco de Maria (Bruno Montaleone), parceiro de Ney por mais de uma década. Além do fato de que era médico, pouco se sabe sobre ele, mas a abordagem do relacionamento é, sem sombra de dúvidas, emocionante: os dois estavam juntos quando Marco morreu em decorrência do HIV e as passagens que simbolizam a perda – dele, de Cazuza e de outras pessoas importantes para Ney – vêm com tanta sensibilidade que não resta outra opção a não ser admirar a beleza que a obra encontrou na dor.
Aqui, aproveito para destacar a "beleza" de forma geral: chama atenção o acabamento sofisticado dos figurinos, da caracterização dos personagens principais e a estética vibrante dos cenários - chega de passado esmaecido, como reforça o próprio diretor. É uma atmosfera que vai perto do lúdico e que penso que até poderia dar um passo além nesta direção. O ponto em que o longa perde força é justamente na linearidade quase que didática para expor os acontecimentos e, com isso, acaba se alongando em pontos que já estavam dados.
Aos fãs das canções de Ney Matogrosso não vão faltar momentos para se derreter na cadeira: mais de 15 músicas que ficaram famosas na voz do cantor fazem parte da trilha de Homem com H e vêm encaixadas em pontos oportunos que não só marcam onde estamos na carreira do protagonista, mas que expressam a profundidade de seus momentos – como, às vezes, acho que só uma boa música é capaz de fazer.
Por fim, é claro, a canção que dá título ao filme também é significativa: o longa no mostra que foi grande o receio de Ney antes de aceitar interpretar a composição de Antônio Barros, mas é difícil imaginar outro artista nesse lugar. Com a autenticidade, ousadia e liberdade de sua performance, do olhar atravessante e do corpo despido de amarras que algumas pessoas certamente vão passar a vida sem entender – e tudo bem –, o intérprete dá alma a essa e outras letras que vão continuar embalando todo o desejo por poder ser quem se é.