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    Guava Island
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Guava Island

    O artista e o ditador

    por Bruno Carmelo

    Diga-se bem ou mal dos serviços de streaming, eles ao menos permitem que o cinema produza e exiba algumas obras audiovisuais que jamais passariam pelo crivo da indústria tradicional. Se uma produção em preto e branco, falada em espanhol e sem atores famosos como Roma parecia uma raridade, Guava Island soa ainda mais exótico. Trata-se de um filme de 55 minutos, filmado em película 16mm, com o formato de tela próximo do quadrado (1x1:33), misturando animação, fábula e filmagem semidocumental, trazendo Donald GloverRihanna como heróis de uma ilha fictícia. Parte cinema, parte videoclipe estendido, ele surpreende primeiro pela singularidade de sua concepção.

    O drama também impressiona pela beleza das imagens. O diretor de fotografia Christian Sprenger efetua um trabalho excelente ao captar o vigor de Guava, mistura de cidade africana com povoado do sul da Ásia, onde se ouve espanhol, inglês e dialetos com a mesma facilidade. As imagens estão repletas de cor e energia, porém sem a estetização do olhar colonizador. Dentro desta história idealizada – incluindo amor romântico, o poder da união e a revolta contra o sistema –, Sprenger captura a espontaneidade dos gestos e afetos como se efetuasse uma crônica social. Este é o principal mérito do filme dirigido por Hiro Murai: por mais lúdico que seja, incluindo animações próximas do traço infantil, ele não perde de vista a realidade palpável e contemporânea que pretende referenciar.

    A vertente política constitui o aspecto mais convincente da narrativa. A usina têxtil onde trabalham as mulheres, e a fábrica onde os homens operam máquinas pesadas representam tantas outras, em qualquer lugar do mundo. O granulado da película carrega as cenas de um aspecto gasto, antigo, como se a transformação social jamais chegasse neste local atrasado. O filme permite o sonho e a escapatória na imagem das festas populares, mas quando ilustra a exploração da mão de obra barata, demonstra claro respeito pelas pessoas nestas condições. A extensão do clipe “This is America”, de Child Gambino, também encontra um espaço adequado na bela cena dentro da usina, ainda que a coreografia perca o impacto da novidade por reproduzir os gestos consagrados no clipe original.

    Em paralelo, Guava Island se mantém modesto. A trama possui um único conflito – o artista (Glover) enfrentando as imposições do ditador (Nonso Anozie) -, resolvido numa única ação, no caso, a decisão de participar de um festival de música, contrariando as ordens do líder. O filme tem ciência de suas pequenas proporções, e jamais extrapola a fantasia para além desta pequena história que mais parece uma lenda para se contar às crianças, ou ainda uma história oral para compartilhar ao redor de uma fogueira, do que um manifesto ambicioso. A simplicidade compensa: o clímax, quando os protagonistas masculinos se confrontam, é excepcionalmente bem filmado e eficaz no minimalismo da ação. Murai possui pleno controle das intenções e potencialidades de cada cena.

    No entanto, o resultado não deixa de soar como um presente vaidoso de Glover a si mesmo. Ele ocupa quase todas as cenas, constituindo o único motor narrativo. O artista tem a oportunidade de cantar, dançar, e interpretar uma versão do malandro conquistador em diversas cenas musicais, mas jamais explora o potencial das crianças cantoras, nem mesmo de Rihanna, que não participa de nenhuma canção. A figura do personagem popular, querido por todos, jamais possui alguma forma de questionamento ou inserção social (os personagens não possuem famílias nem história pregressa). O protagonista apenas reforça a informalidade das regras nas democracias frágeis, contrastando o “malandro com aparato de malandro oficial / malandro com contrato, com gravata e capital” ao malandro “barão da ralé”, como diria Chuco Buarque. Seria interessante se Glover/Gambino deixasse qualquer outro personagem brilhar, ou multiplicasse os pontos de vista para criar um panorama social abrangente. No entanto, o roteiro só possui olhos para ele.

    Em paralelo, a representação feminina decepciona. Rihanna limita-se a manifestar o amor pelo herói, esperando por ele, sonhando com ele ou fazendo as pazes com ele. Letitia Wright possui uma participação mínima, enquanto as demais trabalhadoras ou mulheres religiosas orbitam em torno do ídolo local. Construindo mais fãs do que personagens autônomas, Guava Island sequer passaria no teste Bechdel devido ao ponto de vista unicamente masculino. Apesar do problema de foco que consiste em representar classes populares de modo paternalista e patriarcal, o resultado se destaca pela beleza com que aborda a luta de classes. Quanto a Glover, ele terminará a história como um artista politizado e sedutor, ou então um tipo narcisista utilizando o cinema para se promover – a gosto do espectador.

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