Há 35 anos atrás, um filme ajudou a traçar uma linha divisória na minha relação com o cinema. Ainda um teenager, deixei de ser apenas um adolescente que vai muito (e gosta de) ver filmes – algo comum numa época de menos opções que hoje – para me tornar um verdadeiro cinéfilo – algo que entendo que é mais do que gostar e ver filmes acima da média, mas aquele que vê filmes com outros olhos.
Blade Runner não era um filme de ficção científica comum, pelo menos não era nem de longe parecido com a noção que temos sobre um sci-fi, normalmente um filme de fantasia, ação e aventura que se passa no futuro. Sua estrutura narrativa, seu ritmo, sua fotografia de luz e sombra, era muito mais próximo de um filme policial das décadas de 40-50 (um film noir, como aprendi mais tarde). Sua estética futurista desafiou as audiências, e até nomes foram criados para tentar defini-la. Neon-gótico foi um dos mais empregados.
Talvez seu ineditismo assustou a plateia comum, que procura sempre o conforto do dejà-vu. Por isso, se explica que o filme não foi bem nas bilheterias em sua estreia. Isso hoje não importa. O maior aliado para certos filmes é o tempo. Após seu lançamento, uma galera foi descobrindo o filme, nos antigos VHS ou suas várias sessões de reprise nos cinemas. Virou um cult, com uma legião de fãs que viam e reviam o filme. Muitos outros filmes que foram grande sucesso de público à época de Blade Runner hoje ninguém mais lembra ou fala deles. A influência do filme é imensa e indiscutível – um verdadeiro fenômeno da cultura pop – e não só em relação a outros filmes que foram feitos nos anos seguintes. Ainda hoje é possível encontrar em uma comic-con ou num evento de cosplay jovens caracterizados como Deckard (Harrison Ford) , Pris (Daryl Hannah) ou mesmo Gaff (Edward James Olmos), o policial que fazia origamis no filme.
Mas o impacto do filme não era só visual. Havia a atmosfera ao mesmo tempo sombria e bela de uma Los Angeles distópica, a fotografia rebuscada e uma direção de arte esplêndida. Mas havia algo mais ali do que apenas uma sci-fi escapista. Deckard caça androides que fugiram das colônias para a Terra buscando encontrar seu criador (Tyrell) para exigir que ele lhes reprograme e lhes dê mais tempo de vida. Afinal, todo e qualquer ser humano não tem consciência da própria morte, e gostaria de prolongá-la o máximo possível (ou de um ser querido) ? Esses androides, robôs feitos à imagem e semelhança do homem traziam uma carga existencialista e filosófica ao filme que o elevavam de uma simples leitura distópica steam-punk. A cena mais bela do filme é exatamente, já quase ao final, no discurso de adeus do replicante Roy Batty (Hutger Hauer). A vida é um bem tão precioso – e que deveria ser experienciada mais intensamente – que vale a pena abrir mão dela para que outras vidas tenham vez. Um toque místico se sobrepõe às várias camadas subjacentes de Blade Runner.
Há várias razões que explicam porque o filme funciona tão bem. O roteiro tomou muitas liberdades em relação ao conto original de Philip K. Dick – mas não o diminuiu, pelo contrário – mas manteve as linhas básicas. O elenco de apoio, os coadjuvantes, são todos excelentes, com personagens bem construídos. É fácil criar empatia com cada um deles, mesmo os que aparecem furtivamente – com destaque, é claro, com a performance arrebatadora de Hutger Hauer. A trilha sonora – um elemento quase onipresente na narrativa – é assinada por Vangelis, que mais uma vez comprovou que não constrói trilhas óbvias. Se 1 ano antes, ele havia composto música eletrônica para um filme que se passa no início do século XX (Carruagens de Fogo), aqui ele compôs música que utiliza bastante o jazz, isso para um filme que se passa num futuro próximo.
É muito possível que as novas gerações não consigam enxergar a importância do filme, nem apreciá-lo como merece. Isso porque o ineditismo de sua proposta já se perdeu no tempo, o impacto não é mais o mesmo que proporcionou às plateias de 35 anos atrás, é claro. Mas sua influência se faz sentir até hoje. Nada define melhor um filme como um clássico.