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    Atlanta e a sublime vitória na derrota (Crítica da 2ª temporada)

    Donald Glover apresenta uma história mais estranha, mais engraçada e mais profunda na segunda temporada de sua elogiada comédia.

    FX Productions/Divulgação

    Nota: 5,0 / 5,0

    “Gente pobre não tem dinheiro para ir à terapia”, disse Donald Glover constatando o óbvio em perfil publicado pela New Yorker em março deste ano. E esta frase sozinha — ou melhor, o entendimento dela —  talvez seja o princípio básico que faz de Atlanta uma série tão sublime.

    Com a segunda temporada particularmente, Glover vai ainda mais fundo em todos os sentidos possíveis. Os episódios são mais engraçados, mais estranhos, mais livres e por mais irreal que pareça, mais coerentes entre si do que na anterior. É de uma singeleza sem igual acompanhar aqueles estranhos personagens — Earn (Glover), Van (Zazie Beetz), Al (Brian Tyree Henry) e Darius (Lakeith Stanfield) — tentarem a todo custo chegar a algum lugar e mal conseguirem se mover alguns centímetros. É ainda mais sublime, aliás, o quanto a temporada se dedica particularmente a cada um deles. Há palco para todos.

    Atlanta faz parte daquela safra de “séries de comédia que não são exatamente comédias”, que por vezes valorizam mais o drama do que as tiradas cômicas. Mas Donald Glover tem um diferencial nesse quesito. Poucas pessoas se recordam do fato de ele ter começado na TV como roteirista de 30 Rock, antes de ser alçado ao sucesso com seu cativante Troy Barnes em Community. O próprio Dan Harmon chegou a relatar diversas vezes que Glover improvisou grande parte das piadas que ficaram nas versões finais dos episódios, e por isso é fácil entender de onde vem o timing cômico tão veloz das piadas de Atlanta.

    FX Productions/Divulgação

    Não se trata de um texto óbvio, mas é um que se ancora em regras básicas. Justamente graças ao background de Glover, Atlanta se baseia em formatos clássicos de sitcom. Cada episódio parte de uma premissa simples: Alfred precisa cortar o cabelo e as coisas saem do planejado; Darius vai retirar um piano que comprou na internet e conhece um cara bizarro; Earn planeja uma noite romântica com Van mas nada dá certo, etc. O diferencial é de onde ele parte com isso. Ao invés de acelerar por estes conflitos, os episódios pisam no freio e extraem o inimaginável de cada detalhe. A graça, portanto, está justamente no bizarro.

    Mas o bizarro também é onde ele encoberta o drama, talvez com certos requintes de “crueldade”. A eficiência da parte dramática da série vem da inspiração em situações pessoais, mas a tensão está sempre mascarada entre o que é “distrator”. É mais ou menos a mesma tática que Glover e Hiro Murai, em perfeita sincronia, utilizam em ‘This is America’. No clipe, entre os passos de dança e os sorrisos de dentes brancos, vem um baque surdo que escancara a experiência dos negros nos Estados Unidos. Na série, entre um olhar reveladoramente cômico e outro de Al, vem uma frase devastadora e realista.

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    “As pessoas vêm para Atlanta pelos clubes de strip e pela música e diversão, mas a parte básica é que os personagens estão fumando maconha o tempo todo não porque é legal, mas porque eles têm TEPT”, revelou Glover no mesmo perfil da New Yorker. “Todas as pessoas negras têm. É assustador estar no fundo, gritando para o mundo do dentro do buraco e todas as pessoas te dizem ‘Continue cavando! Vamos chegar a Deus logo!”

    Estes são detalhes que não são óbvios para todos — mas imprimem uma singularidade que não pode ser replicada — que distinguem Atlanta da massa. Trata-se de uma apresentação pesada, mas real. O deslocamento de Al e Earn do mundo é apenas uma versão levemente acentuada do desagrado universal.

    “Robbin’ Season” se destaca de maneira especial em dois episódios. O fenomenal ‘Teddy Perkins’, mini conto de terror nas barbas de Corra!, e ‘FUBU’, flashback que traz Earn e Alfred na época do colegial. O mais inteligente da temporada é exatamente como cada um dos episódios funciona como algo isolado, em um primeiro momento quase como se não tivessem conexão alguma entre si. É exatamente o que Donald Glover havia explicado quando fez uma ousada comparação com o filme Tiny Toon Adventures: Férias Animadas; isolados, cada um daqueles episódios de fato fazem sentido e se bastam. Mas a realização do que os mantém unidos está no subtexto, na sensação de derrota de cada um dos personagens. A cereja do bolo está no final.

    FX Productions/Divulgação

    Chekhov’s Gun é provavelmente um dos artifícios de roteiro mais utilizados da TV e do cinema, e Atlanta consegue revertê-lo do óbvio e ligar as duas pontas da segunda temporada utilizando literalmente uma arma — mas sem dispará-la. Em ‘Alligator Man’, Willy (Katt Williams) entrega a arma a Earn e diz que ele ainda vai precisar dela. Na season finale, ‘Crabs in a Barrel’, o rapaz descobre que a arma ainda está na sua mochila quando está no aeroporto, prestes a embarcar com Paper Boi para uma turnê na Europa, e então a coloca na bolsa de Clark County (RJ Walker), o rapper que seria a atração principal. Earn e Al querem o posto.

    No final, o subtítulo “Robbin’ Season” fazia uma referência muito mais sutil do que o anunciado. Todos estão sendo roubados de uma forma ou outra, seja das oportunidades, do dinheiro, ou da autenticidade. O que Donald Glover quer mostrar com a segunda temporada é o quão difícil é até mesmo se entender o que é autenticidade. O conflito de Al entre abandonar Earn e procurar um outro agente — que o colocaria em comerciais, jingles e programas de TV — é justamente um debate sobre este conceito.

    E de fato, não existe uma resposta definitiva. Mas Earn está tentando, todos eles estão. Ele até conseguiu vencer Tracy (Khris Davis) e expulsá-lo da casa de Al no fim das contas. E esta tentativa, em uma era em que estamos mais conscientes do que nunca de todas as opressões que vêm de todos os lugares, já é uma vitória.

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