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    Lovecraft Country: Crítica da série de terror da HBO

    De forma ambiciosa, Lovecraft Country utiliza o terror cósmico como pano de fundo para denunciar as barbaridades sofridas pela comunidade negra.

    NOTA: 4,0 / 5,0

    A crítica abaixo contém spoilers de Lovecraft Country.

    H.P. Lovecraft é um dos autores que ajudaram a moldar a face do terror. Seus contos imaginativos atravessaram gerações, e inspiraram cineastas icônicos como John Carpenter (Enigma de Outro Mundo) e Stuart Gordon (Re-Animator). Contudo, poucos sabem que o escritor era abertamente racista. Basta pesquisar, e em cinco minutos, você verá declarações terríveis do artista.

    Misha Green (Spartacus) — uma diretora e roteirista negra — sabia disso e fez questão de adaptar as obras do autor em Lovecraft Country. O resultado foi uma série extremamente desafiadora, que transformou histórias com raízes preconceituosas em plataformas de protesto e resistência.

    Aqui, o terror cósmico — que conta com criaturas monstruosas e horrores indescritíveis — serve como pano de fundo para questões maiores. A verdadeira tensão da produção se encontra no racismo estrutural, violência policial e repressão de gênero. Por esse motivo, o seriado está — infelizmente — mais atual do que nunca.

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    Na trama, Atticus (Jonathan Majors) embarca em uma viagem pelos Estados Unidos para solucionar o desaparecimento do pai. Tudo isso acontece na década de cinquenta, período marcado pela intensa segregação racial. Na época, os negros percorriam o país com a ajuda de um guia chamado “Green Book”, que indicava estradas e locais seguros para a comunidade afro-americana.

    Logo no primeiro episódio, toda essa realidade paranoica e injusta nos atinge como um soco no estômago. Ao lado de Leti (Jurnee Smollett) e George (Courtney Vance), Atticus enfrenta situações humilhantes pela cor de sua pele. Um dos momentos mais indigestos da temporada ocorre quando o trio é parado por um xerife conservador, que lhes dá um minuto para sair da cidade. Caso não consigam, serão mortos pelas autoridades locais.

    E claro, acoplado aos temores sociais, Lovecraft Country traz elementos sobrenaturais ao roteiro, como fantasmas, sereias e criaturas alienígenas. A decisão é inegavelmente ambiciosa, e até ajuda a potencializar o terror da obra. Entretanto, a combinação entre os dois mundos nem sempre dá certo.

    As sequências de fantasia — com algumas exceções — não são capazes de amedrontar o público. O tom destes momentos é muito mais aventuresco, nos remetendo a clássicos como Indiana Jones. E tudo bem, há um certo charme nisso. Porém, caso o terror fosse realmente eficiente, a experiência poderia atingir níveis ainda mais sufocantes.

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    Ao lado das cenas políticas, as ocasiões paranormais ficam ofuscadas e não atingem o mesmo nível de excelência. O episódio em que Ruby (Wunmi Mosaku) se transforma em uma mulher branca é uma das poucas vezes em que a obra consegue balancear temáticas distintas. Nele, o espectador reflete sobre privilégios raciais, mas também fica espantado pela metamorfose sangrenta da personagem.

    Outro ponto alto da temporada ocorre quando Diana (Jada Harris) é detida em um beco por dois policiais. Ao ser enforcada, ela grita “Não consigo respirar”, em uma clara — e indigesta — referência ao assassinato de George Floyd.

    A situação só piora quando ela é amaldiçoada por um dos oficiais, e passa a ser perseguida pelos espíritos de duas meninas bizarras. Aliás, a influência de Jordan Peele (Nós) como produtor de Lovecraft Country fica evidente nesta sequência. Mais uma vez, o seriado entrega o equilíbrio perfeito entre horror e drama. Mas claro, para a experiência ser perfeita, isso precisaria acontecer mais vezes.

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    A densidade narrativa da produção também pode afastar alguns espectadores. Por muito tempo, a criação de Misha Green vai acrescentando tramas paralelas ao enredo, que acabam poluindo a narrativa e diminuindo a fluidez entre os episódios. Às vezes, a sensação era de estar vendo séries diferentes em uma única temporada. Consequentemente, o conjunto da obra soou inconsistente — apesar de não ser.

    Porém, se a obra pecou nos arcos secundários que distanciaram o público de seu objetivo central, ela definitivamente acertou em suas dezenas de referências históricas e literárias. Todas elas são estrategicamente contextualizadas e enriquecem o significado das cenas.

    Apenas em seu piloto, a produção recria fotografias de Gordon Parks — artista famoso por expor injustiças raciais —, homenageia Alexandre Dumas — autor negro que escreveu O Conde de Montecristo — e coloca o simbólico debate entre James Baldwin e William Buckley como trilha sonora de uma das cenas. 

    Portanto, assistir a nova série da HBO é estar imerso em uma cultura poderosa, que vem sendo oprimida silenciosamente desde os primórdios do cinema e televisão. Além disso, a trajetória de personagens como Tic e Leti apenas reiteram o quanto a revoltante ficção do seriado está próxima da realidade. 

    A tarefa de adaptar as criações de H.P. Lovecraft é complexa, pois os monstros do escritor são tão inventivos, que é fácil entregar um resultado hilário ou apenas cringe. Este não é o caso da produção. Sem medo de ousar, Lovecraft Country entrega visuais impecáveis — que irão ditar um novo padrão de qualidade para obras do gênero —, performances comoventes e uma proposta corajosa o suficiente para cutucar todas as feridas de uma sociedade violentamente desigual. 

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