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    Admirável Mundo Pop: A voz do fã é a voz de Deus?

    Não deveria ser assim, mas Hollywood vai mostrando que está propensa a se dobrar a reclamações - ainda mais se for para evitar prejuízo.

    Na semana passada, Sonic – O Filme ganhou seu primeiro trailer, mantendo a tradição de um longa-metragem baseado em videogames gerar polêmica, discussões e decepções. 

    Explicando para quem não conhece: Sonic surgiu em 1991 como o principal mascote da marca japonesa de jogos eletrônicos SEGA. Inspirado em um ouriço (ou hedgehog), ele tem como características mais alardeadas a supervelocidade, a atitude debochada e o temperamento curto. Ah sim, vale também destacar que o Sonic é azul, adora anéis dourados e pode se transformar em uma bola destruídora de obstáculos.

    A versão do herói dos games para os cinemas se aproveita dessa onda recente de filmes que transformam personagens não-humanos em seres “vivos”, tal quais os recentes DumboPokémon: Detetive Pikachu e O Rei Leão. Executar essa transição é algo complicado de se acertar em cheio, e é justamente aí que parece estar o problema de Sonic. Se ainda não assistiu ao trailer, a chance é agora.

    Ao invés de optar por uma reprodução fiel de um personagem tão consagrado em diversos jogos (e em desenhos, brinquedos etc), o filme de Jeff Fowler propõe uma reinterpretação cheia de licenças poéticas – ou, físicas, por melhor dizer. As pernas musculosas de atleta não passam batido, assim como a forma esguia do corpo como um todo. Os olhos são relativamente pequenos se comparados ao do original. Mas nada incomodou mais a internet do que os dentes, humanos demais e bem visíveis quando o Sonic abre a boca para falar -- com a voz de Ben Schwartz, que aliás não soa assim tão natural como o Ryan Reynolds dublando o Pikachu. 

    Os fãs caíram matando e a crítica também. E olha que quase ninguém reclamou da escolha bizarra de "Gangsta's Paradise" para a trilha sonora. Jim Carrey também foi bem elogiado como o vilão Dr. Robotnik. Mas o visual do Sonic parece algo indefensável. Choveram reportagens críticas de todo tiposátiras, memes e reinvenções do design. Sonic apareceu nos trending topics e não foi por uma boa razão.

    O diretor prontamente se pronunciou no Twitter, dizendo que as reclamações foram absorvidas e que algo irá mudar no design do personagem. Fowler pode ser um diretor de primeira viagem, mas deve ter carta branca para fazer tal afirmação. Se ele diz que as mudanças vão acontecer, é porque algo realmente será feito. Se levarmos em conta que se trata de um protagonista totalmente criado em computação gráfica, que deverá estar em mais da metade das cenas, fica claro que o trabalho de refação será gigantesco -- se é que será realmente possível.

    Em se tratando de grandes alterações de última hora, Hollywood traz um precedente recente. Em 2017, a decisão de substituir Kevin Spacey por Christopher Plummer em Todo o Dinheiro do Mundo, a menos de dois meses da estreia, não apenas foi a acertada, mas rendeu frutos -- Plummer acabou indicado ao Oscar pela atuação. O diretor Ridley Scott agiu rápido para garantir que seu filme não fosse contaminado pela reputação de Spacey naquele momento, manchada por inúmeros escandalos de assédio sexual. As refilmagens foram feitas em dez dias e custaram US$ 10 milhões. Na superfície, fica parecendo que a justificativa para a mudança foi digna, mas ficou claro que a motivação foi principalmente financeira. Ter Spacey no filme muito provavelmente machucaria a performance nas bilheterias.

    Mas substituir um ator humano é algo mais simples do que alterar um personagem cem por cento digital. No caso de Sonic - O Filme, será que há tempo viável para as mudanças? Sabendo que o deadline está próximo (o filme deveria estrear em 8 de novembro nos EUA e só em janeiro por aqui), o quanto isso custará aos designers e animadores para corrigir o que precisa ser refeito? Será que essas pessoas serão recompensadas por tanto trabalho extra em um prazo tão curto? 

    Outra coisa: será que os muitos profissionais envolvidos em produtos muito ambiciosos (e aí incluo também os videogames e algumas séries de TV) merecem pagar o pato por decisões tomadas por superiores? De quem é a culpa se o visual do Sonic não exatamente foi comemorado e recebeu mais críticas do que elogios? De quem criou o design, de quem ajudou a elaborar o design ou de quem aprovou o design?

    Hoje em dia, reclamar é permitido e todo mundo tem direito. Não diz o ditado que “quem tem boca vai a Roma” (e não “vaia Roma”, como muita gente acredita)? Então, somos educados a acreditar que se reclamarmos em voz alta, alguém irá ouvir e algo poderá acontecer. Com as redes sociais, então, isso está multiplicado ao infinito. Nunca antes na história da humanidade demos tanta opinião, sobre qualquer assunto, mesmo que não estejamos qualificados para isso. É só abrir a boca, ou digitar. Ou seja, se cada fã pensa que um filme é feito só para agradá-lo, é porque o mundo atual nos doutrinou a pensar assim. 

    O mundo do entretenimento parece estar cada vez mais atento às repercussões do público e vai se movimentando para agradar e "fazer a coisa certa". Porém, que ninguém se iluda muito: a opinião do fã importa para a indústria, sim. Mas somente se houver risco de prejuízo financeiro lá na frente.

    Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema, apresentador do programa Mitos do Pop e consome entretenimento desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.

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