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    Admirável Mundo Pop: M. Night Shyamalan tem teto de vidro, mas ele não liga se você atirar a primeira pedra

    O novo filme do mestre do plot twist mostra que planejar muito pode dar errado -- ou que talvez o objetivo fosse esse mesmo.

    M. Night Shyamalan é uma figura curiosa, ímpar, sem igual no mundo do cinema. É uma peça rara que causa sensações diferenciadas a cada novo filme e em cada tipo de espectador. Não me lembro de um cineasta em atividade nos últimos 20 anos com uma carreira tão cheia de altos, baixos, altos e baixos... ou seria melhor dizer plot twists

    E o pior, ou melhor (ou talvez um pouco das duas coisas), é que Shyamalan parece ser um cara cheio de intenções dignas e compreensíveis para alguém em sua posição privilegiada. Ele só quer deixar sua marca como um grande cineasta. Ele quer fazer filmes divertidos que permaneçam nas memórias das pessoas. Ele quer surpreender e maravilhar com as reviravoltas mais inesperadas e ser reconhecido pela inventividade e talento. Ele quer que a gente fique esperando ansiosamente pelo próximo projeto dele.

    Shyamalan sabe como a sensação de reconhecimento é deliciosa: foi algo assim o que ele sentiu com quatro de seus filmes em sequência. Daí, experimentou o buraco triste da rejeição nos quatro longas seguintes. E agora, ganhou a chance de voltar à superfície, renovado, rumo a algo parecido com um topo. Se é que no mundo do entretenimento isso existe mesmo. 

    Oportunidade para isso, o homem encontrou para si. Se você está lendo este texto no AdoroCinema, deve saber que o diretor indiano deu a cartada mais impressionante de sua carreira ao final de Fragmentado, seu filme de 2016 que nos apresenta um enlouquecido James McAvoy preso a 24 personalidades diferentes. Ao longo da história, jamais somos informados de que aquela é uma continuação de Corpo Fechado, sua pequena obra-prima lançada em 2000. Nada dava a entender isso até a cena final, quando escutamos a música-tema característica e revemos a figura estoica e inesquecível de David Dunn, o protagonista superpoderoso de Bruce Willis. Como assim, fomos enganados novamente? Ah, esse Shyamalan...

    Em seguida, para arrematar esse inédito plot twist metalinguístico, o diretor anunciou que estava preparando um novo filme para encerrar o que agora se tornara uma trilogia. Vidro, focado no personagem Mr. Glass de Samuel L. Jackson, traria todos os personagens de Corpo Fechado e Fragmentado de volta, reunidos em mais uma história para encerrar todas as outras de uma só vez. Cérebros cinéfilos explodiram de empolgação, bum! Sim, parecia aquele bom e velho Shyamalan fazendo das suas...

    Vale aqui um breve resumo dessa carreira tão errática quanto fabulosa: após um início discreto como roteirista e diretor, M. Night Shyamalan experimentou o sucesso aos 29 anos com O Sexto Sentido, um drama sobrenatural com surpresa no final, que graças ao boca-a-boca se tornou o segundo filme mais assistido de 1999. No ano seguinte, Corpo Fechado deu continuidade à boa reputação, com mais um inesperado momento "uau" no desfecho que deixou o público querendo mais. Os dois seguintes, Sinais (2001) e A Vila (2004) não causaram tamanho impacto, mas ofereceram lampejos de genialidade e foram celebrados por seus próprios méritos. Shyamalan definitivamente tinha uma interessante voz própria que merecia ser ouvida.

    Daí começaram os deslizes. A Dama na Água (2006) exagerou no tom sobrenatural e caiu na pieguice. Em Fim dos Tempos (2008), as coisas saíram de controle e aquele estilo único pareceu se tornar uma paródia. Os outros dois longas, os fracos O Último Mestre do Ar (2010) e Depois da Terra (2013) sofreram nas bilheterias, muito por não lembrarem em nada o tipo de cinema criativo que Shyamalan parecia destinado a fazer. A crítica o malhou e o público o esqueceu. Tudo apontava para o fim de uma carreira promissora que queimou rápido demais.

    Mas Shyamalan tinha algumas cartadas escondidas. Em 2015, com o terror A Visita, discreto e autofinanciado, ele mostrou que ainda sabia brincar de surpreender a audiência. No ano seguinte, Fragmentado e seu já citado final bombástico provaram que aquele era um cineasta que Hollywood e os fãs deveriam levar novamente em consideração. E assim chegamos a Vidro, o resultado de sua empreitada criativa mais ambiciosa, que estreia em 17 de janeiro.

    Assisti a Vidro na semana passada e digo, com a dor no coração de um fã cheio de expectativas, que Shyamalan errou a mão dessa vez. Com um olhar bem positivo, é até possível aplaudir o filme como mais uma mostra de sua genialidade e de suas escolhas acertadas (leia aqui a crítica do AdoroCinema). Mas também é possível interpretar que uma excelente oportunidade foi desperdiçada por decisões bastante questionáveis -- os críticos parecem que estão concordando nisso. Assista você mesmo para tirar conclusões. Mas independentemente de ser bom ou ruim, o simples fato de Vidro existir já deveria ser louvado. Porque não é o tipo de aposta que a maioria dos diretores faria.  

    Realmente, não dá para acusar M. Night Shyamalan de falta de ambição. Nenhum cineasta de Hollywood soube explorar tão bem sua própria mitologia, mesmo que para isso corresse o risco de se tornar uma versão esculachada de si mesmo. Ele poderia ter insistido em novas histórias de terror, como provou recentemente que reaprendeu a fazer. Mas preferiu revirar o passado de um de seus principais projetos, um daqueles que fomentou sua reputação de salvação de Hollywood na virada do século passado. Mais arriscado do que isso, só se ele tentasse uma continuação de O Sexto Sentido com um Haley Joel Osment adulto e barbudo reencontrando seus fantasmas (que Shyamalan não tenha ideias com este texto).

    Eu admiro Shyamalan porque ele é corajoso como poucos nomes de sua geração. Ele assumiu riscos enormes, mesmo sabendo que tudo poderia dar errado e que jamais teria uma chance tão boa de se consagrar novamente. E a possibilidade de Vidro ser unanimidade e acertar em cheio era inversamente proporcional à enorme expectativa dos fãs e curiosos, agora que ele teve a ousadia de reunir os personagens e mitologias de dois dos melhores filmes de sua carreira.

    O que me parece é que Shyamalan é um obcecado, um dependente da sensação causada pela improbabilidade de um twist que mude todo o sentido de uma história. Então ele se arrisca, torcendo para obter essa sensação no público e, quem sabe, nele mesmo. Às vezes, mergulhar de cabeça em um projeto absurdo funciona. Às vezes, dá bastante errado. E talvez tudo isso seja parte do plano dele. Quem sabe a ideia de Shyamalan não seja mesmo dar uma bola fora após acertar uma dentro? Porque isso não deixaria de ser um plot twist por si só.

    Não quero dizer que M. Night Shyamalan sabota seus filmes de propósito só pelo prazer de proporcionar o inesperado. Mais do que isso, ele certamente sabe o que está fazendo quando assume certas escolhas perigosas e toma caminhos improváveis. Ele quase literalmente tem um telhado de vidro nesse momento, então está pronto para aceitar as consequências de seus atos. É por isso que a graça a partir de agora é observar seus próximos passos. Porque com certeza não serão nada do que a gente poderia esperar dele.

    Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.

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