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    A ética protestante e o espírito marginal de Neville D'Almeida: "Fui criticado pela direita e pela esquerda" (Entrevista)

    O diretor de filmes controversos e bem sucedidos como A Dama do Lotação fala sobre espiritualidade, critica "os déspotas medíocres" e se reafirma como o "cineasta mais censurado da história do cinema brasileiro".

    Lauro Vasconcelos

    Neville D'Almeida estufa o peito para se proclamar o diretor brasileiro mais censurado da história nacional. Seu espírito rebelde e a abordagem de temáticas transgressoras fizeram com que filmes como Mangue Bangue, Surucucu Catiripapo e Gatos da Noite fossem embarreirados pelas mentes quadradas dos censores do regime militar.

    "Muitos movimentos cinematográficos muito importantes não tem nenhum certificado de censura porque todo mundo subiu no muro", diz o cineasta, que conversou com o AdoroCinema durante o Festival Guarnicê de Cinema de 2016, realizado na cidade São Luis, no Maranhão.

    Mais de 30 anos depois da redemocratização, Neville segue atento para denunciar aqueles que, em sua visão, tentam cercear os limites de seus trabalhos artísticos. "Hoje existe a censura dos editais, existe a censura das comissões de seleção, existe a censura dos patrocinadores e existe a censura dos festivais", avalia o cineasta, que tem quase 50 anos de carreira.

    Nascido em Belo Horizonte, o diretor que hoje tem 75 anos de idade se mudou para o Rio de Janeiro nos anos 60. Depois de uma temporada em Nova York e em Londres, Neville iniciou uma produtiva carreira como realizador nos anos 70, figurando entre os baluartes do cinema marginal. Apesar da alta fertilidade artística, a maior parte de seus filmes produzidos nesta época foram barrados pela censura militar.

    Em 1978, lançou seu primeiro filme de sucesso, o drama sensual A Dama do Lotação, estrelado por uma Sônia Braga no auge da venustidade. Com uma trama sobre uma mulher frígida recém casada que descobre o prazer do sexo em casos extra-conjugais, Neville alcançou marcas louváveis de bilheteria. O longa-metragem levou mais de 6,5 milhões de pessoas aos cinemas e permanece como o quarto filme nacional com o maior número de espectadores em todos os tempos, atrás apenas de Dona Flor e Seus Dois Maridos, Tropa de Elite 2 e Os Dez Mandamentos - O Filme.

    "Eu agradeço a Deus por ter feito A Dama do Lotação, por Ele ter me dado o talento, a capacidade, a visão para fazer Rio Babilônia, fazer todos esses filmes", afirma o diretor, com um tom de voz afável. Assim como tudo na carreira de Neville, sua espiritualidade é fora dos padrões, fora dos eixos, fora do que se esperaria de alguém criado como evangélico. Nascido no berço da Igreja Metodista, o diretor diz que sua tradição protestante o fez olhar o mundo com outros olhos. "Eu tenho pena dos cineastas que nunca leram a Bíblia, que desdenham dela", critica.

    "A arte é a religião de Deus", afirma o diretor ao explicar sua paixão pelo cinema e justificar os temas polêmicos que apresentou em seus filmes, sem moralismos, sem anestesias. "As pessoas falam assim: 'Como é que você faz A Dama do Lotação, filma uma mulher nua, faz Rio Babilônia, trata de drogas, faz não sei o quê, como você pode falar em Deus?' Eu digo: O talento vem de Deus."

    Quando fala sobre o fazer cinematográfico (e o ofício de outras artes), quando fala sobre suas parcerias com amigos nos sets de filmagens, Neville se mostra amoroso e inebriado pelas lembranças ao lado de nomes como Rogério Sganzerla, Hélio Oiticica e Nelson Rodrigues, dramaturgo que teve algumas de suas obras adaptadas para os cinemas por Neville em filmes como o já citado A Dama do Lotação e Os Sete Gatinhos. Ao falar sobre as " perversões na produção cinematográfica brasileira", sobra furor. É como se Neville estivesse diante de uma raça de víboras.

    Quando o assunto é o Festival do Rio, um de seus alvos frequentes durante a conversa com o AdoroCinema, Neville não mede palavras: "Eles são totalmente medíocres, sem nenhum conhecimento, sem nenhuma cultura verdadeira e tem uma visão oblíqua. É uma visão que tem a profundidade de uma gilete no asfalto." Quando menciona o cinema que despreza, não hesita em usar termos fortes: "A primeira coisa é pulverizar o ego para poder ser artista. O que acontece por aí é o contrário. Os filmes são de autorreferência e exaltação do ego, daí tanta porcaria. São esses que atacam o cinema do Neville."

    Nesta entrevista, Neville fala sobre seu mais recente filme, o drama A Frente Fria que a Chuva Traz, que encerrou um hiato de mais de 15 anos sem lançar um longa-metragem no circuito comercial; fala sobre suas visões sobre a burguesia; sobre crer que há uma "esquerda travestida de direita"; sobre seus próximos projetos, como o filme A Dama da Internet, entre outros temas. Leia a íntegra abaixo.

    AdoroCinema: A Frente Fria Que A Chuva Traz encerrou um período de mais de uma década sem lançamentos seus. A que se deveu o hiato?

    Neville D'Almeida: Eu acho que é importante a pergunta, só queria dizer o seguinte: Existe uma deformação muito grande... existe uma perversão na produção cinematográfica brasileira. Existe uma burocratização enorme e [existe] mesmo uma censura. Eu vejo de volta a censura. Eu conheci tão bem a censura militar. Tive 5 filmes interditados, proibidos, jamais exibidos até hoje. Vejo uma censura ascendente agora. E a censura agora se manifesta de novas formas, formas mais modernas.

    Então hoje existe a censura dos editais, existe a censura das comissões de seleção, existe a censura dos patrocinadores e existe a censura dos festivais. Como isso acontece? Você pega um filme e manda para um festival, vamos citar um exemplo aqui, o Festival do Rio de Janeiro, que é um festival que está há mais de 20 anos com as mesmas pessoas.

    Festival não pode ter dono. Festival tem que ter alternância de poder. Nós vivemos hoje uma ditadura do gosto. A ditadura do gosto é assim: "Isso aqui eu não gostei, não entra no festival. Isso eu gostei, entra". A censura que os festivais exercem é inadmissível. Tem que haver uma revisão. Você não pode dirigir um festival e falar "isso eu não gosto, não entra", o poder que um curador tem hoje, o poder que uma comissão de seleção tem hoje está errado, entendeu?

    Todos se mancomunam para colocar o gosto deles. Temos que democratizar isso, e tem que haver alternância de poder. Então quando você pergunta "Por que você está há tanto tempo fora?", eu estou há tanto tempo fora porque as quadrilhas que dirigem essas coisas todas aí querem me manter fora.

    Houve um período na História em que existiam os déspotas esclarecidos. Hoje temos os déspotas medíocres. O maior exemplo disso é a comissão de seleção e os curadores do Festival do Rio. São déspotas medíocres, que tentam exercer a ditadura do gosto. Eles são totalmente medíocres, sem nenhum conhecimento, sem nenhuma cultura verdadeira e tem uma visão oblíqua. É uma visão que tem a profundidade de uma gilete no asfalto. Mas não são só eles.

    Eles não tem esse direito. Eles estão trabalhando com dinheiro do povo, com dinheiro público. Eles deviam ter uma visão de sensibilidade e não uma visão de censura, de ditadura de gosto.

    Não adianta [para mim] ter sido sucesso de público, não adianta ter sido sucesso de crítica, não adianta a consagração popular, não adianta nada. O que adianta são essas quadrilhas que dirigem essas entidades, esses festivais que querem manter as pessoas fora, querem excluir você mesmo.

    A que você se dedicou artísticamente nesse período longe dos holofotes?

    Queria avisar que nesse tempo eu me dediquei artisticamente a fazer cinema o tempo todo. Tem gente que fala "poxa, você ficou 15 anos sem mostrar o filme, tirou férias". Não, não passou um dia sequer, um dia que eu não quisesse, que eu não sonhasse, que eu não pensasse, que eu não planejasse em fazer um filme.

    E por causa dessa canalhada toda que gente vê e que é toda escondida na ditadura do gosto, eu criei um projeto chamado Neville Sem Lei. O Neville Sem Lei é o Neville sem lei de incentivo. Eu faço direto, sem lei de incentivo, sem lei desse bom gosto fajuto, sem a lei dessas limitações culturais e artisticas, sem lei para essa cegueira, para essa coisa, essa nova censura, não é isso?

    Hoje, no Brasil, se você tem um projeto... "Olha, quero fazer um documentário sobre uma manifestação popular". Ah, você quer fazer? Então faz um projeto, manda para o Ministério da Cultura, pede para ser aprovado, para depois mandar para a Ancine, para depois mandar para as comissões e você jamais será aceito. E aí passa um ano, passam dois, passam três, passam quatro... Você leva cinco ou seis anos para fazer um filme. Para este meu filme mesmo, A Frente Fria Que a Chuva Traz, foi aprovado um orçamento de R$ 3,5 milhões. As pessoas me perguntam: "É esse o filme que você queria fazer?". Eu respondo: "É esse ó filme que eu queria fazer naquele dia, naquele mês, naquele ano". Mas demorou sete anos. É uma perversão, é um crime. Agora, se você é um mauricinho, de uma família importante, se você tem amigos, se você tem influências, se você comunga das mesmas ideias de uma direita travestida de esquerda...

    Sete anos depois nós só conseguimos captar R$ 700 mil. Um filme de baixo orçamento hoje é considerado um filme de R$ 1,5 milhão. Eu falei "Olha, gente, vamos fazer o filme com o que nós temos". E nós conseguimos fazer o filme em 16 dias com esse dinheiro, com muita dignidade, com muita qualidade, com um grande elenco, com um ótimo equipamento, ótima qualidade técnica, ótima qualidade artística. É um filme totalmente diferente de tudo que tem no cinema brasileiro, um filme de transgressão poética, transgressão de linguagem e transgressão verbal. As coisas que são ditas no nosso filme jamais, na história do cinema brasileiro, foram ditas com essa liberdade.

    O elenco de A Frente Fria Que a Chuva Traz conta com atores jovens que, para o grande público, são mais conhecidos por produções televisivas, algumas delas voltadas até para o público infanto-juvenil. O seu filme traz uma proposta que é completamente oposta do que é visto na teledramaturgia das grandes emissoras brasileiras. Foi justamente para provocar esse contraste que essa equipe foi convidada?

    Sem dúvidas. Quando eu chamo os atores eu chamo os atores para fazer o que eles nunca fizeram. Eu não chamo os atores para fazer o que eles já vêm fazendo. É dessa forma que eu valorizo o elenco. Eu não chamo um elenco [pensando] se [os nomes] são importantes, ou se não são importantes. Os atores do meu filme nunca tinham feito cinema. Eu os escolhi através de testes. Eu faço só uma pergunta para o elenco: "Você está preparado para viver intensamente esse personagem?" Se o ator estiver preparado para viver intensamente aquele personagem, ele vai fazer. Às vezes há atores que dizem assim "Ah, isso eu não faço". Eu falo "É verdade, isso você não faz na sua vida, mas o personagem faz".

    Para mim, um dos personagens mais geniais do filme é o cantor sertanejo interpretado por Michel Melamed, que confunde sucesso comercial com relevância artística. Você poderia falar mais sobre ele? Se trata de uma metáfora para a maneira como se consome cultura atualmente?

    Este personagem é uma metáfora sobre a nova música que faz sucesso no Brasil na qual os cantores e cantoras não são artistas, são objetos mercadológicos. São produtos mercadológicos sem a menor qualidade. Quando você olha uma geração que tinha Milton Nascimento, Chico Buarque, Jorge Mautner, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Belchior, Zé Ramalho, Fagner... Era um negócio genial, essa inventividade de várias partes do Brasil. E se você olha o panorama de hoje...

    Eu acho que [o personagem de Michel Melamed] é uma crítica sim porque essas pessoas acham que são artísticas, mas são meros produtos. Você nota também que essas pessoas não tem opinião, não tem ideal. Essas pessoas pensam que a vida é só vender shows. Há essa mentalidade caça-níquel, essa mentalidade de ganhar muito dinheiro para gastar em Dubai, essa mentalidade deslumbrada, de ir comprar avião, barco. Nós estamos vivendo em um momento de grande obscuridade. Aquele cantor no filme é isso.

    "No Brasil, as pessoas que não tem nada a dizer são as que têm mais espaço"

    Vou te dar um exemplo. Nós tivemos, no ano passado, a maior tragédia ambiental do mundo, que foi o rompimento de uma barragem em Minas Gerais, que destruiu um rio inteiro e poluiu o mar. Você viu algum desses artistas, que ocupam um espaço enorme em todas as mídias, falando uma palavra sobre isso? Ninguém é capaz de dar uma opinião. Essas pessoas que estão aí... Esses "safadinhos", essas coisas, só pensam um centímetro a frente do nariz. [Esses artistas são] em cultura, sem sentimento artístico, sem ética, sem vida espiritual. São totalmente baseados no sucesso comprado por um dinheiro podre.

    No Brasil, as pessoas que não tem nada a dizer são as que têm mais espaço. "Ah, você não tem nada a dizer? Então vem cá!" Elas estão nas televisões, estão nos programas. Fazem entrevistas com eles e eles mostram seu requinte. Tudo isso para humilhar os pobres, tudo para ofender, tudo para ostentar.

    Ainda falando sobre A Frente Fria Que A Chuva Traz, o filme não seria o mesmo sem a presença da Bruna Linzmeyer. Como foi trabalhar com ela?

    Eu acho que a Bruna é a mais importante atriz brasileira da geração dela. A Bruna só tem 23 anos e eu costumo falar com ela "Bruna, você já tem 40 anos", por causa da seriedade, por causa da capacidade de concentração.

    Eu escolhi a Bruna um ano antes [de começar a rodar o filme]. Eu sou muito dedicado aos atores e às atrizes, então um ano antes eu já falei "Essa é a pessoa que pode fazer uma jovem prostituta que fica fazendo boquete na Avenida Atlântica para sobreviver". Ela teve a coragem, a dignidade, de se entregar totalmente. Isso é maravilhoso.

    "A entrega é tudo, entende?"

    É muita coragem. Dezenas de mini-atrizes, pequenas atrizes, atrizes medíocres, que é o que mais tem, jamais fariam aquele personagem. Eu agradeço a Deus pelo filme que eu fiz, pelo elenco que eu consegui e pela entrega que era necessária. A entrega é tudo, entende?

    Em um bate-papo com o público no Festival Guarnicê, você falou sobre sua formação religiosa na Igreja Metodista. Naquela conversa, você disse que costuma sempre agradecer a Deus e ressaltou o valor da espiritualidade. Isso se reflete no seu cinema?

    Sim, porque todas as histórias que estão na Bíblia te dão uma cultura, uma visão. Eu tenho pena dos cineastas que nunca leram a Bíblia, que desdenham dela. Eu acho que nós temos que ter uma visão cultural, artística, ética e espiritual. É por isso que eu falo: Para fazer A Dama do Lotação tem que ser mineiro e protestante.

    " A arte é a religião de Deus"

    Eu tenho uma visão de desenvolvimento espiritual, de crescimento espiritual. A vida não acaba aqui, ela vai continuar. Então o desenvolvimento espiritual, a meditação, todas essas coisas são importantes. São essas coisas que me dão a liberdade que eu tenho. Os outros, que acham que eu não preciso de nada disso, estão fazendo tudo de forma medíocre, de forma limitada, de forma burguesa e com muita pretensão e muito pouco talento. A moda politicamente correta é uma forma de enganar, é uma forma de fingir que sabe, de fingir que pode. São déspotas medíocres.

    Eu vejo assim (e essa frase é muito importante): A arte é a religião de Deus. As pessoas falam assim: "Como é que você faz A Dama do Lotação, filma uma mulher nua, faz Rio Babilônia, trata de drogas, faz não sei o quê, como você pode falar em Deus?" Eu digo: O talento vem de Deus.

    Deus quer os artistas livres. Não adianta vendê-lo por uma ótica humana. Deus não trabalha na censura. Deus não trabalha na polícia. Deus não pode ser visto com essa medíocridade humana. Não pode ser visto com essas análises fajutas, com essa profundidade de uma gilete no asfalto. Deus quer os artistas livres. Nosso Deus é o Deus do perdão, o Deus da alegria, o Deus do entendimento, o Deus da compreensão, não é o Deus medíocre dessas pessoas, com essa coisa de punição, de "isso-pode-isso-não-pode". Eu agradeço a Deus por ter feito A Dama do Lotação, por ter me dado o talento, a capacidade, a visão para fazer Rio Babilônia, de fazer todos esses filmes. Eu agradeço a Deus e o busco. Quando vou filmar peço a Deus para me iluminar. A liberdade vem de Deus e a prisão vem... Vem dessas coisas.

    Você já tratou do tema dos excluídos em outros filmes e agora você volta à favela, mas uma favela fetichizada pela burguesia. O que você acha desse fenômeno protagonizado pela classe média?

    Esse fenômeno gerou até um adjetivo novo, que está em moda no Brasil, que é a cafetinização da favela. As pessoas vão lá para tirar tudo deles de lá, mas não levam nada. Essa é que é a coisa. A classe dominante só quer cafetinizar, em todos os sentidos. Eles não são capazes de fazer um ato, uma atitude, uma defesa em relação às pessoas que moram ali naquele lugar. Eles querem ver o lado folclórico, querem ver a vista, querem ver as pessoas, querem tomar tudo que puderem, mas sem dar nada.

    Para a nossa classe dominante a favela só serve para ser usada e não serve para receber uma atenção maior.

    No Rio de Janeiro, uma em cada quatro pessoas mora numa favela.

    Deve ter mais de um milhão de pessoas vivendo em favelas [no Rio de Janeiro]. Eu me pergunto: Existe alguma favela no Rio, ou no Brasil todo, que transformaram num bairro? Que mudaram tudo? que derrubaram os barracões? Que construíram prédios para dar dignidade para essas pessoas? Não existe. Os governos que passaram não fizeram. Essa é uma das doenças brasileiras muito graves.

    [No filme] eu estou falando de perversão falo desse grupo de ricos, sem nenhuma visão, que aluga uma laje pra fazer um bacanal. É uma perversão. 

    Eu vou falar [sobre] os personagens do Navalha na Carne: Os homens são bonitos, as mulheres são bonitas, eles vestem as melhores roupas, roupas de botiques, com seus cabelos e maquiagens, e, no entanto, são totalmente sórdidos. Eu vou dizer: Eu tenho nojo daqueles personagens. Uma metáfora do filme para mim é que aquele filme é como um vômito na cara da burguesia.

    O filme A Dama do Lotação, por exemplo, aborda a sexualidade sem julgar a personagem da Sônia Braga. A Frente Fria Que A Chuva Traz também carrega uma sexualidade muito latente, mas os personagens são repugnantes. Como evitar que alguém interprete isso como algo moralista?

    Isso envolveria mediocridade das pessoas que seriam capazes de pensar assim. Essas pessoas se identificam tanto com esse fascismo todo que são capazes de chegar a um pensamento desse tipo. Os medíocres se identificam. São os fascistas, os hipócritas, os fariseus.

    "Eu fui criticado pela direita e fui criticado pela esquerda"

    O filme não é sobre as coisas que eu gosto, o filme é uma crítica, o filme vai muito além dos nossos pensamentos. A gente tem um cinema todo egoísta, autocentrado, onde o cineasta tem que sair de si para fazer um filme. A primeira coisa é pulverizar o ego para poder ser artista. O que acontece por aí é o contrário. Os filmes são de autorreferência e exaltação do ego, daí tanta porcaria. São esses que atacam o cinema do Neville.

    O Neville começou a fazer cinema na ditadura e jamais aceitou a ditadura. O Neville é o cineasta mais censurado da história do cinema brasileiro, com certificados para mostrar para todo mundo. Muitos movimentos cinematográficos muito importantes não tem nenhum certificado de censura porque todo mundo subiu no muro.

    Eu fui criticado pela direita e fui criticado pela esquerda. Hoje, a mesma censura que eu sofri na ditadura, sofro hoje por essa direita travestida, maquiada, de esquerda, que não tem nada a ver com a realidade social e não tem nenhuma sensibilidade social. No entanto, através da hipocrisia, através do farisaísmo, [eles] querem te julgar.

    Você tem quase 50 anos de carreira como cineasta e foi testemunha ocular de diversas mudanças da sétima arte no Brasil. Como você vê o cenário atual da produção cinematográfica no país? O que há de bom e ruim?

    O bom é o cinema emergente, é o cinema que a gente viu aqui no Festival Guarnicê, por exemplo. Filmes como Ralé, filmes como Para Minha Amada Morta, filmes como Tereza [curta-metragem], filmes como Quintal [curta-metragem], filmes como Rapsódia Para o Homem Negro [curta-metragem], filmes como Ameaçados [curta-metragem]. Isso é o cinema emergente.

    E para além do Festival Guarnicê de Cinema de 2016?

    Destaco filmes como os do cineasta Fábio Carvalho, de Minas Gerais, como o Tamur Aimara, como César Oiticica Filho, como Júlio Calasso, como Beto Brant, que eu admiro muito. Em todas essas pessoas existe uma poderosa corrente criativa.

    Você falou aqui sobre o seu projeto pessoal, que você entitula como "Neville Sem Lei", sem lei de incentivo. Aproveitando o tema, o que você acha de leis como a Lei Rouanet, que é central em tantas polêmicas? Você acha que essa lei deveria ser aperfeiçoada ou revogada?

    Olha, eu acho que as leis brasileiras de [incentivo à] produção são muito boas. Podem ser aperfeiçoadas, podem ser desenvolvidas, podem ser melhoradas, mas, em princípio, as leis são boas. O problema é a burocratização. E o problema são as pessoas que estão gerindo esses fundos, que estão gerindo essas comissões, que estão gerindo essas curadorias, que tentam fazer um assassinato cultural do cinema brasileiro, privilegiando só a suas própria turma.

    O cinema brasileiro repete um pouco a política brasileira. São guerras de quadrilhas. Estão baseados em interesses próprios, e não em interesses públicos e coletivos.

    Para terminar, fale sobre os seus projetos futuros

    Eu tenho três objetivos, que espero conseguir alcançar. São [sobre] os três maiores problemas que nós temos. Há o problema da inclusão da mulher na sociedade, em que ela continua sendo uma escrava. Os estupros coletivos são prova disso. A questão da mulher é um tema... Aliás, praticamente todos os meus filmes são dedicados à personagens femininas e eu jamais julguei um personagem. Então [esse filme sobre a questão da mulher] é A Dama da Internet.

    A outra tragédia brasileira é [relacionada ao] meio ambiente, é a morte anunciada da floresta amazônica. Então [esse] é [o tema do] meu filme Bye Bye Amazônia.

    E a outra tragédia brasileira está relacionada aos negros e aos índios, que são totalmente discriminados. Você vê, por exemplo, quantos governadores negros nós temos? Quantos senadores negros nós temos? Isso estará no filme Escravidão.

    Em qual pé está a produção ou pré-produção desses projetos?

    Eu estou trabalhando no Bye Bye Amazônia há cinco anos. Eu estou trabalhando no Escravidão há dois anos. Trabalho no A Dama da Internet há seis anos, com muito pouco resultado porque existe uma... Aliás, eu queria falar uma coisa, que é muito importante, que é uma campanha que estou começando a fazer. Chegou a hora do Brasil pedir perdão aos negros e índios por todas as atrocidades cometidas nos últimos 500 anos. É necessário que o governo brasileiro peça perdão aos negros, índios e pardos. É uma atrocidade. A campanha é: governo brasileiro, peça perdão e busque formas de compensar esse assassinato cultural todo.

    Esses três filmes são ficções ou documentários?

    São ficções. Eu espero que dê tempo de fazê-los e eu acho que eu vou fazer sim porque eu vivo para isso. Nessa viagem aqui [para o Festival Guarnicê] eu decidi que eu vou fazer o Bye Bye Amazônia partindo do Maranhão.

    Todo o meu cinema é dedicado a criticar as classes dominantes. Não há nenhum filme meu que não tenha isso, entendeu? Essa coisa de continuar sendo censurado até hoje é muito grave. Quero muito estimular os artistas a serem cada vez mais artistas e cada vez menos vendidos.

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