Fernanda Montenegro eleva filme baseado em história real, mesmo sob contratempos dentro e fora da tela
por Diego Souza CarlosA observação da vida cotidiana faz parte do aspecto ordinário e corriqueiro de qualquer rotina. Isso muda, no entanto, quando o entorno passa a afetar drasticamente a existência de alguém, algo que acontece com Nina, protagonista de Vitória interpretada por Fernanda Montenegro.
Dirigido por Andrucha Waddington, de Eu, Tu, Eles, Casa de Areia e Sob Pressão, o longa chega aos cinemas com livre inspiração em uma história real - algo que o próprio projeto faz questão de destacar.
O longa conta a emocionante trajetória de uma aposentada que desmontou uma perigosa quadrilha de traficantes e policiais a partir de filmagens feitas da janela do seu apartamento no Rio de Janeiro. Com a ajuda de um jornalista investigativo, ela enfrenta os riscos e perigos de uma situação inimaginável.
Assistir a um filme inédito de Fernanda Montenegro é sempre motivo de muito entusiasmo para todos aqueles que adoram cinema. Próxima de completar um século de vida, a atriz entrega uma atuação comprometida e multifacetada em Vitória, algo que eleva o filme em muitos momentos. As marcas da idade são notáveis em seus gestos e até na fala - e nada disso atrapalha a performance da artista, que consegue tanto se movimentar de maneira inesperada como flutuar tranquilamente entre o humor e o drama de maneira ágil e orgânica.
Ao representar uma idosa que se vê compelida a agir em um ambiente em que a violência se tornou cotidiana, a personagem então passa a questionar a passividade das pessoas de seu prédio, movimento que se repete diante das autoridades. Ao entrar em contato com os demais atores, o tom das atuações não é tão harmonioso, com direito a certas caricaturas - do condômino conservador ao jovem esquentado - no caminho.
Através dos seus olhares e do caminhar, ora ansioso, ora pesaroso, Montenegro consegue transmitir coisas que nem sempre são ditas em cena. A invalidação de pessoas da terceira idade é presença constante, mas também há o sofrimento silencioso da solidão e de assistir o restante de uma vida difícil se esvair na companhia do medo.
Os momentos de observação nos levam diretamente ao clássico Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, quando Nina decide encontrar as provas que poderiam fazer a diferença na onda de violência que cerca a vida de todos da região. No entanto, diferente do suspense estrelado por James Stewart, não há necessariamente um mistério do outro lado. Muito pelo contrário: o tráfico de drogas, as mortes e o aliciamento de menores ao crime seguem seus fluxos sob a luz do sol e da lua, diariamente.
Quando a protagonista começa a agir, o filme passa a se distanciar da dramédia e, enquanto um Rio de Janeiro cinzento e melancólico ganha forma na tela, a trama caminha para um thriller policial. O misto de gêneros, somado ao melodrama adicionado aos dilemas da personagem de Fernanda, poderiam ser responsáveis por uma densidade substancial, mas o roteiro, talvez preocupado em encaixar causa e efeito à cronologia, acaba parecendo parte de um cinema burocrático.
Embora esse ritmo seja afetado, a montagem não deixa de trabalhar a ambientação de maneira rica. O apartamento, uma vez aconchegante logo nos primeiros minutos da história, ganha uma atmosfera sufocante - é um lar que se torna um quartel general. Responsável por manifestar muito do que os personagens vivem, a fotografia também imprime esse ar de indignação que guia a protagonista - o mesmo recurso que, infelizmente, não parece se preocupar com o tratamento da pele de alguns personagens em termos de contraste e iluminação.
Durante as gravações das movimentações da comunidade ao lado, Nina tem interações contínuas com um morador de lá: Marcinho, interpretado pelo talentoso Thawan Lucas. A criança auxilia a senhora com suas compras e, com o tempo, passa a ser uma das suas poucas companhias. O garoto se torna uma das chaves de virada do filme com o desenvolvimento da narrativa.
Uma vez que a presença do jovem se paute em pequenas interações dentro do apartamento e poucas cenas externas, ele passa por mudanças drásticas sem muitos esforços do roteiro - e precisamos assistir a uma cena de uma criança negra, supostamente sob uso de substâncias, sendo rechaçada por dois adultos brancos - sequência que nos leva a uma estrutura constante no cinema.
Enquanto a única personagem multidimensional é a protagonista, os demais têm seus papéis muito bem definidos no longa, sem grandes complexidades - os bandidos e os policiais são antagonistas, já o jornalista Flávio (Alan Rocha) e a vizinha Bibiana (Linn da Quebrada) representam o auxílio no avanço da história com diferentes pesos e importâncias.
Ambos, com ótimas atuações, ficam um tanto presos a seus arquétipos, mas entregam a rede de apoio que esquenta o coração do público além da protagonista. Inclusive, a personagem de Lina tem um pouco menos de tempo de tela, mas entrega uma relação bonita com a idosa em cada oportunidade, algo que, se fosse mais explorado, poderia enriquecer a narrativa.
Nesta equação, Marcinho não é apenas um ponto de afeto para a idosa, que não tem mais uma família, mas surge como âncora para que mudanças sejam, enfim, realizadas. As ações relacionadas ao garoto, ainda que sejam genuínas dentro do enredo, ganham um aspecto de "salvador branco" até o encerramento do projeto. Isso, querendo ou não, acaba transbordando para fora da tela, já que a pessoa real que inspira a história era negra - e isso mudaria todo o efeito e o simbolismo do que é apresentado.
É válido falar, é claro, que a escolha de elenco e a produção do longa foram feitas antes da verdadeira identidade de Joana Zeferino da Paz vir à tona. Todos os detalhes relacionados à figura real estavam sob proteção legal.
A livre inspiração na vida real tem o benefício de apresentar uma história já impactante sob os moldes cinematográficos. Logo no início do filme, com o susto de um tiroteio, Nina derruba uma xícara que lhe parece muito valiosa, fruto de uma memória que não nos é compartilhada. Durante toda a trama, enquanto tenta "consertar" a situação em que vive, ela também se esforça para colar os cacos deste objeto de valor afetivo. Ao fim, embora consiga deixá-lo muito próximo do que já foi um dia, ele não é mais funcional - e essa analogia, sem ares fatalistas, está inserida dentro da trama principal.
Como a própria sinopse já oferece esse vislumbre, não vamos considerar isso como spoiler, portanto vemos a protagonista sacrificando uma vida de duras conquistas para que a verdade venha à tona. Com um inesperado humor, elencado pelo ótimo timing de Fernanda Montenegro, e a atuação valiosa de uma artista que dedicou a sua vida pela arte e, assim por dizer, pela cultura de um país, Vitória é mais uma demonstração de como bons artistas têm o poder de elevar tudo o que tocam.
Tropeços são dados, mas o longa não deixa de ser envolvente justamente por uma cativante atuação. Com coadjuvantes alinhados ao todo, o projeto coloca os holofotes na história real de Joana Zeferino da Paz, que não apenas demonstrou coragem para destruir um esquema de tráfico que envolvia toda uma rede política e policial de financiamento, mas também poupou a vida seriam atingidos violência ou limadas pela falta de oportunidades.