Amy Adams late horrores e expõe as angústias da maternidade em Canina
por Nathalia JesusPresente na seleção do Festival do Rio 2024, Canina foi um filme que atiçou minha curiosidade de um jeito peculiar naquela época. Pela sinopse, você não espera por algo muito maior do que uma comédia “estranha”. No entanto, o longa-metragem surpreende e acaba oferecendo uma experiência sensorial carregada de simbolismo e desconforto, que vai do absurdo ao trágico, questionando os limites da psique humana e da transformação pessoal.
Baseado no livro homônimo de Rachel Yoder, Canina (ou Nightbitch, no título original) mergulha no universo de uma mulher que, no IMDb, é creditada somente como “Mãe”, o que diz bastante sobre o enredo do filme — e, por mais esquisito que possa soar, é assim que a chamarei ao longo dessa crítica.
Interpretada por Amy Adams, ela começa a questionar sua própria identidade quando se vê progressivamente transformada em uma espécie de “cachorro”. Inicialmente, essa transformação física parece absurda, uma metáfora bizarra, mas com o desenrolar da trama, a personagem começa a refletir questões profundamente enraizadas na vida cotidiana das mulheres contemporâneas — especialmente no que diz respeito à maternidade, à vida profissional, ao desejo e à pressão de se encaixar em estereótipos impostos pela sociedade.
Gradualmente, Canina se estabelece como uma espécie de comédia grotesca, com cenas que flertam com o surreal. A protagonista, uma mãe dedicada que luta para manter seu papel como esposa e mãe perfeita, começa a observar mudanças misteriosas em seu corpo — e logo suas mãos e dentes começam a se transformar de forma quase animalesca. O longa-metragem poderia facilmente cair na caricatura ou no exagero, mas o texto da diretora e roteirista Marielle Heller com a esquisitice moderada de Adams conseguem balancear esses elementos com uma gravidade que garante que a transformação da Mãe seja engraçada e inquietante.
A performance de Amy Adams é, sem dúvidas, um dos maiores trunfos do filme. A atriz imprime uma sensibilidade única a uma personagem que, à primeira vista, poderia ser apenas uma figura trágica ou comicamente excêntrica. Ao longo do filme, vemos a Mãe lutar contra sua crescente “caninidade”, com momentos de violência interior e de desconexão com seu papel como mãe. A atriz é brilhante ao ilustrar o distanciamento entre a mulher que ela imagina ser e a que realmente se torna.
O filme também merece crédito por sua habilidade em criar um ambiente visualmente tenso e perturbador. As cenas de transformação da Mãe são feitas com um tipo de estética desconfortável, que tenta ser um body horror, mas sem empenho o suficiente para levar a repulsa a níveis maiores. O uso de cores, iluminação e enquadramentos aumenta o senso de distorção do corpo e da mente da personagem, fazendo com que o espectador se sinta parte de sua luta interna.
No entanto, é impossível falar de Canina sem reconhecer seu tom ambíguo. Se por um lado, ele abraça a ideia de uma comédia sobre as transformações físicas e psicológicas da protagonista, por outro, há uma exploração mais sombria e pesada sobre a identidade feminina. Durante o filme, nos pegamos pensando: “Uma mãe não pode ser nada além de mãe? A maternidade é quase tão brutal quanto a morte? Ao me tornar mãe, sou menos mulher? Menos pessoa?”
Em vários momentos, o filme se aproxima de uma crítica mordaz à maternidade, com a personagem de Amy Adams lidando com a pressão de ser uma mãe idealizada, mesmo enquanto começa a perder o controle de seu próprio corpo e mente. Em uma cena particularmente perturbadora, Mãe é forçada a lidar com a violência implícita da sua transformação ao ser obrigada a adotar comportamentos caninos — algo que parece simbolizar as expectativas sociais de que as mulheres se submetam aos padrões de docilidade, subordinação e sacrifício.
Nesse sentido, Canina é mais do que uma simples história de transformação ou uma fábula sobre aceitação. O longa-metragem também investe em uma crítica incisiva sobre o que significa ser uma mulher na sociedade contemporânea, especialmente quando a maternidade e o casamento são impostas como o auge de uma existência plena.
Mãe, à medida que se transforma, parece mais livre, mais próxima de algo visceral e primal, mas, ao mesmo tempo, está sendo despida de sua humanidade. A luta interna que ela enfrenta é, portanto, não apenas uma jornada de autodescoberta, mas também uma meditação sombria sobre os papéis limitados que ela, idealmente, deveria performar enquanto mulher.
Inclusive, tais reflexões são reafirmadas graças a figura masculina do Marido (não pai, mas Marido, conforme creditado no IMDB). Interpretado por Scoot McNairy, o personagem está ali como uma lembrança constante de que, talvez, sua vida antes de se tornar mãe não seja mais tão importante. Se a personagem de Amy Adams já está cansada o suficiente por passar o dia trancada em casa cuidando de uma criança, certamente ela não precisa de uma carreira. Ou de amigas. Ou de uma vida que não derive necessariamente de seu título de Mãe.
Apesar da atraente desconstrução do realismo, diretamente conectado à psique de Mãe, o ritmo do longa-metragem pode ser um tanto desconcertante para quem espera uma história mais linear. A narrativa não segue uma linha temporal simples — embora o filme, em si, não seja lá muito complexo — mas se desenrola mais como um pesadelo. Ou como se estivéssemos lendo a mente de uma protagonista viciada em nos explicar o que está sentindo (em uma dinâmica que funcionaria melhor se fosse um podcast, ao invés de um filme). Estamos vendo o que acontece o tempo todo e, de certa forma, soa como se Canina estivesse nos subestimando enquanto espectadores.
Apesar de suas qualidades inegáveis, Canina pode não ser para todos os gostos. Sua abordagem experimental e a intensidade de sua mensagem podem afastar espectadores que esperam uma comédia leve ou um filme de terror convencional. A natureza imprevisível do roteiro, com mudanças abruptas de tom, cria uma experiência que pode ser tanto fascinante quanto desconcertante. No entanto, para aqueles que buscam algo mais desafiador e subversivo, péssima notícia: o longa-metragem também não acrescenta tanta profundidade em suas discussões.