Emma Stone abraça vale da estranheza em comédia sombria com alienígenas, conspirações e o (possível) fim da humanidade
por Diego Souza CarlosO bom de adorar cinema é que se você se abrir para a pluralidade de histórias disponíveis nas telonas, pode presenciar o surgimento de grandes preciosidades dentre pedras que podem até brilhar, mas não tem valor algum. Um ditado antigo já dizia que "quando o mel é bom, a abelha sempre volta" e quem já assistiu a algum filme de Yorgos Lanthimos sabe que o sabor de sua arte não é nada convencional, mas nunca (nem mesmo nas entradas menos atrativas) deixa de ser imperdível.
O aclamado e controverso Pobres Criaturas foi responsável não apenas pelo Oscar de Melhor Atriz de Emma Stone, mas também foi a grande definição da artista como a diva do cineasta. Depois da adaptação da obra do autor escocês Alasdair Gray, os dois acabam de chegar à quarta colaboração em longas (não esqueçamos de A Favorita), Bugonia, um filme que pode tirar as desconfianças daqueles que se sentiram decepcionados com Tipos de Gentilezas.
Universal Pictures
Bugonia acompanha dois homens obcecados por teorias da conspiração que sequestram a poderosa CEO de uma grande empresa. Convencidos de que ela é uma alienígena prestes a destruir a Terra, eles vão, pouco a pouco, entrando em um vale da estranheza proposto pelo característico cinema de Yorgos. Desde o início do filme, algumas mensagens são bem claras: a tensão social pautada no conflito de classes é um bom ponto de partida para a trama, mas isso é apenas a ponta do iceberg.
Isso não é necessariamente novo em seus trabalhos, mas o que o realizador faz aqui é alimentar uma atmosfera constante de paranoia e desconfiança. De mãos dadas com dualidades que se transmutam a todo instante - os monstros e a mocinha, a vilã e as vítimas, os caipiras e a moça rica, os humanos e a possível alienígena -, ele faz aquilo que poderia ser apenas um thriller psicológico se tornar em um dos filmes mais divertidos do ano.
Bugonia é aquele tipo de longa que joga com a audiência em um constante flerte com diferentes possibilidades. Enquanto ficamos presos nesta casa e vivenciamos parte do cárcere da executiva, também entramos em um ritmo de delírio coletivo. Estes homens conspiracionistas são apenas pessoas cooptadas por uma extrema-direita regada a fake news ou Michelle é realmente uma alienígena pronta para acabar com o planeta?
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Apenas por esse fato o longa já teria certo mérito para o público que adora suspenses, mas é apenas uma das formas de se enxergar a trama. O roteiro não apenas brinca com expectativas, mas leva os atores a monólogos e interações milimetricamente executados. Em alguns momentos é um balé teatral, em que os argumentos de ambos colidem e a situação vai se tornando tensa a ponto de ser palpável e a provocação do iminente atrito diverte.
Com créditos a Jang Joon-hwan, cineasta responsável pelo filme que inspirou Bugonia, Save the Green Planet!, o texto assinado por Will Tracy abre o palco para que os atores se divirtam. O trabalho do roteirista de O Menu, Succession e O Regime consegue equilibrar, de maneira bem curiosa, o misto de drama e suspense com muita comicidade. Não que o humor seja algo ausente nas obras de Yorgo, de maneira alguma, mas é curioso ver como um filme consegue descer e subir entre temas densos com pitadas de comédia ácida.
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Mesmo que o personagem do jovem Aidan Delbis consiga alguns dos momentos mais ternos em um filme eventualmente melancólico, é nas atuações dos veteranos que Bugonia ganha seu principal apelo. Jesse Plemons é Teddy Gatz, um apicultor que vive com seu primo Don (Delbis), um garoto ingênuo que vê em seu único familiar presente uma referência.
Em um bom casamento entre caracterização e performance, o ator de Guerra Civil abraça os trejeitos de um homem simples e interiorano, talvez ignorante em um linguajar mais direto, que alimenta a sua triste existência com uma paranoia sem fim - mas muito bem arquitetada e explicada (para ele) pelos lugares mais aleatórios da internet.
Já Emma Stone interpreta Michelle Fuller, a CEO de uma grande corporação farmacêutica que, em um mergulho egocêntrico em sua própria identidade, acredita estar fazendo algo relevante para seus clientes e funcionários. Pela força que essa executiva exerce sobre seu império, a personagem parece friamente decidida a reverter a situação do sequestro com várias táticas de persuasão. Ela representa o quão ambígua pode ser a figura corporativa, o que a dinamiza entre vilã e vítima ao decorrer da trama - processo também vivido pelos demais protagonistas.
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Um retrato sobre a era da desinformação, os primos acabam ludibriados por teorias da conspiração que os fazem tomar a decisão radical de sequestrar uma pessoa. Embora seja uma caricatura sobre o emburrecimento das pessoas quanto à checagem de notícias e fácil indução das fake news na atualidade, Yorgos os coloca também como a parte mais fraca da engrenagem ao se aprofundar em suas histórias.
Mesmo ao evocar de forma bem-humorada os milhões de “tios do zap” que vemos por aí, mas aqui levados ao extremo, os motivos que os levaram a estes fins são um pouco mais complexos do que se esperaria: seus motivos são concretos e, levados pelo desespero de uma sociedade que não os enxerga, se tornam presas fáceis de discursos vazios.
Uma vida miserável, com abusos e perdas significativas, a falta de perspectiva e a ilusão de que a salvação é tão inalcançável que só poderia existir em uma ideia irreal dá sustentação aos seus atos. O longa poderia se resumir a uma alegoria de como o capitalismo corrói a humanidade para formar consumidores (e no caminho destrói vidas), mas pelas mãos do cineasta a produção ganha uma identidade única, já que Yorgos não desiste do vale da estranheza enquanto brinca com gêneros opostos.
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Repare: trata-se de uma ficção científica desprendida de grandes recursos padrões para este tipo de filme. O apuro estético é visível, uma escolha que sustenta o surrealismo imposto pela narrativa, excluindo imagens que poderiam ser mais duras e frias em função de um visual que impõe uma energia fabular. O que torna o longa único, e engraçado, é pensar que todas estas escolhas estão encapsuladas em uma história que conversa diretamente com a vida real.
O fim, para alguns, pode até enfraquecer algumas ideias, mas é coerente (e surpreendente) dentro de sua própria estrutura. Se Emma Stone é uma alienígena ou não, só assistindo ao filme para saber, mas Bugonia consegue ser crítico à sociedade sem abrir mão tanto do humor quanto da triste (e inevitável) ideia de que a humanidade está implodindo.
Filme assistido na 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo