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    Titane
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Titane

    Violência e sexualidade expostas no horror corporal

    por Bruno Botelho

    Atualmente, a roteirista e diretora Julia Ducournau aparece como uma das cineastas mais interessantes do cinema francês por causa de duas obras que abraçam o controverso Novo Extremismo Francês: seu primeiro longa-metragem Grave (2017), que revelou a diretora para o mundo e, claro, o aclamado Titane (2021) – que foi o grande vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2021.

    Para quem não sabe, o Novo Extremismo Francês surgiu na França e se trata de um movimento cinematográfico composto por filmes transgressivos que apresentam temáticas pesadas e violência explícita, que desafiam o público para a reflexão sobre diversos aspectos da sociedade – contrapondo com muitos filmes de terror de Hollywood. Ficaram marcados pelo estilo produções polêmicas como Desejo e Obsessão (2001), Irreversível (2002), Alta Tensão (2003), A Invasora (2007) e Mártires (2008). 

    Qual é a história de Titane?

    Em Titane, um violento acidente de carro deixou longos e duradouros efeitos colaterais: Uma criança carrega uma placa de titânio em seu crânio; uma modelo de showroom de carros começa a ter atração sexual por seus produtos. Depois de um tempo, uma gravidez inesperada se transforma em um massacre aterrorizante e um bombeiro se reencontra com um homem brutalmente queimado que diz ser seu filho perdido.

    Logo de cara o público é apresentado à definição de titânio: "metal altamente resistente ao calor e à corrosão, com ligas de alta resistência à tração, muito utilizado em próteses médicas devido à sua pronunciada biocompatibilidade", o que deixa claro como a produção quer abordar a relação do material (neste caso, também as máquinas) com o corpo humano em uma espéciel de transformação pelo uso do "horror corporal" – subgênero do terror que mostra violações agressivas e perturbadoras ao corpo humano.

    Com roteiro e direção de Julia Ducornau, Titane apresenta apresenta a atriz Agathe Rousselle no papel da protagonista Alexia, uma mulher que apresenta uma inadequação social e não consegue nutrir bons relacionamentos, com homens ou mulheres. Ducornau expõe a objetificação sexual que ela sofre pelos homens por causa de suas apresentações eróticas em cima de carros, o que desperta impulsos violentos de Alexia em uma série de assassinatos. A trama ganha novas reviravoltas ainda mais assustadoras quando ela engravida – aparentemente de uma relação com um automóvel – e o personagem de Vincent, interpretado por Vincent Lindon, entra em cena trazendo uma humanidade em meio ao caos em sua vida.

    Inquietação de Julia Ducornau em seu horror corporal provocante

    Desde sua estreia em longa-metragem com Grave, Julia Ducornau mostrou bastante inquietação quanto a suas narrativas provocativas, especialmente com o apelo para o horror corporal (o famoso "body horror"). Neste caso, a diretora usou os elementos violentos do canibalismo para mostrar o amadurecimento e tranformações de sua protagonista, Justine (Garance Marillier) – que faz uma participação em seu segundo filme –, principalmente quanto à descoberta de sua própria sexualidade. 

    Em Titane, Ducornau vai além no uso do horror corporal em Alexia, apresentando de maneira desconfortável e transgressora uma relação entre o corpo humano e suas mutações quando são moldados pela realidade social da personagem, por suas emoções, violências, repressões, prazeres e desejos – traçando um paralelo com as maquinas em um contexto onde estamos cada vez mais cercados e dependentes da tecnologia digital, assim como o erotismo. O interessante é que não temos um foco esclusivo no terror e suas vertentes, mas sim um passeio por diversos gêneros cinematográficos e diferentes linguagens para abordar o inconsiente da psicologia humana e seus desejos e, claro, emoções.

    Se tratando disso, fica evidente a inspiração da cineasta no mestre do horror corporal David Cronenberg, especificamente em Crash - Estranhos Prazeres (1996) – onde pessoas se sentem sexualmente excitadas por acidentes de carro –, mas também temos ecos de Sob a Pele (2013) de Jonathan Glazer, que usa a progressiva transformação corporal na personagem alienígena de Scarlett Johansson para discutir sobre sexualidade e violência sexual, algo semelhante ao feito por Julia Ducornau ao longo de Titane e que abre a possibilidade para diversas interpretações sobre libertação sexual e emocional de seus protagonistas.

    Ousado e violento, Titane é um filme desafiador e, por isso mesmo, fascinante 

    Titane caminha para o terror visceral quando entra em contato com o horror corporal e atitudes extremas de Alexia, mas aos poucos se encaminha mais para a fantasia quando se volta para sua bizarra gravidez e relação com os automóveis, e o drama quando explora a relação entre sua protagonista e Vincent – quando rende momentos emocionantes, introspectivos e reflexivos consequentes do afeto que os dois personagens não receberam em suas vidas, e acabam encontrando um no outro.

    Claro, não é possível dizer que se trata de um filme de simples compreensão e até mesmo relação. A falta de informações e clareza sobre a vida e atitudes de Alexia pode ser um problema para muitas pessoas se conectarem com a personagem e seus dramas. O estilo de Ducornau pode incomodar os mais sensíveis, mas é exatemente o que ela traz de tão fascinante ao usar a textura sonora e visual para inspirar sensações físicas, mesclando sequências viscerais, surreais e contemplativas que entram de forma profunda na psique humana.

    Obviamente que tudo isso não seria possível sem a contribuição da incendiária cinematografia de Ruben Impens e a inquietante trilha sonora de Jim Williams, ressaltando é claro a fúria e exaustão de Alexia, assim como a compaixão comovente de Vincent, em atuações poderosas de Agathe Rousselle e Vincent Lindon.

    Vale a pena assistir Titane?

    Titane é um dos filmes mais inquietantes e transgressivos no cinema de terror atual, onde a roteirista e diretora Julia Ducournau usa da visceralidade do horror corporal para discutir violência e sexualidade, ao mesmo tempo que se aprofunda na psicologia humana e consegue apresentar uma das relações mais emotivas de 2021. Depois de se destacar com Grave, Ducournau desafia ainda mias o público e fascina com a estranheza em suas sequências violentas, surrealistas e, ao mesmo tempo, contemplativas. 

    *O AdoroCinema conferiu esse filme na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo de 2021.

     

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