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    Varda por Agnès
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Varda por Agnès

    Meu testamento

    por Bruno Carmelo

    Este documentário começa pelo final, ou seja, pelos créditos de encerramento. Todos aqueles letreiros que costumam desfilar ao final da sessão, quando as pessoas estão se levantando e saindo da sala, são apresentados no início, forçando o público a acompanhá-los por inteiro. As belas imagens aquareladas e a música orquestrada tornam a experiência mais prazerosa. De qualquer modo, a escolha nada tem de anódina: ela nos lembra que aquelas centenas de técnicos e colaboradores, a quem se agradece quando uma obra é concluída, constituem o verdadeiro tema do filme. Este é um filme sobre cinema, sobre gente de cinema, sobre ideias de cinema. Desta vez, os bastidores estão em cena.

    Nada mais justo, igualmente, do que começar pelo fim dentro de um projeto que se anuncia como testamento. Agnès Varda prometeu que, aos 90 anos de idade, este seria o seu último filme. Pela idade avançada, sabe-se que um ciclo de vida se encerra. Assim, ela decide retomar as partes principais da carreira, seus acertos e seus erros, suas escolhas cinematográficas e sociais. Para quem teme uma repetição da abordagem encontrada em As Praias de Agnès, não há motivo para preocupação: embora as duas obras conversem uma com a outra, o documentário anterior oferecia uma espécie de autoficção sobre a vida pessoal de Varda. Desta vez, ela se preocupa com seu legado cinematográfico, privilegiando a trajetória como cineasta e artista visual.

    O novo projeto é mais técnico, teórico, e voluntariamente didático, sem qualquer conotação pejorativa do termo. Combinando cenas de palestras e debates, além de gravações inéditas para este filme, ela efetua um processo de curadoria da própria vida, separando os momentos que julga prioritários em mais de sessenta anos de trabalho com as artes. É importante destacar que Varda não se vangloria, nem reivindica uma aclamação maior por parte de público e crítica. Com a humildade e o bom humor habituais, justifica suas escolhas de enquadramento, de iluminação, de temática, de montagem. Ela encontra os atores de antigamente para discutir sua direção de elenco (“Você foi muito dura comigo”, lembra Sandrine Bonnaire) e confessa os fracassos inesquecíveis, a exemplo de As Cento e uma Noites.

    A cineasta reforça a noção de que “um travelling é questão de moral”, como diria Godard: cada imagem, cada cena foi pensada dentro de uma ideologia, uma crença artística e cinematográfica, além de um modo de vida. Varda sempre se considerou feminista, progressista, sempre lutou pelas minorias e por uma forma do real retratado no cinema. Este modo de pensar afeta cada uma de suas escolhas, algo demonstrado pela própria cineasta com impressionante capacidade de distanciamento. O resultado é uma excelente aula de direção cinematográfica, além de uma forma madura de refletir sobre a noção de autoria artística em tempos de criações digitais, híbridas e múltiplas.

    É verdade que, em determinados momentos, o projeto se aproximada da reportagem, em especial na apresentação convencional do trabalho de Varda com instalações e performances. Do mesmo modo, dedica-se um tempo considerável a louvar a Fundação Cartier de Arte Contemporânea, algo que aproxima determinadas cenas do material institucional. Com exceção destes trechos, o projeto permite conhecer melhor as motivações e decisões artísticas de uma mulher que nunca quis “trapacear nem com o tempo, nem com a geografia”, em suas próprias palavras. Ela possui uma consciência lúcida sobre as épocas distintas que viveu, escancarando seu envelhecimento e preparando-se para o fim da vida.

    Varda by Agnès se conclui com uma carta de despedida endereçada ao cinema, ao público, à Varda da juventude. A diretora se despede com a sensação de dever cumprido, querendo controlar, até o final da vida, a narrativa a respeito de seu legado. Tamanha pretensão é trabalhada com senso de leveza, entre piadas, anedotas, uma fisicalidade quase burlesca e uma paixão imensurável pela beleza do cotidiano. Em sua exposição franca, Varda oferece um exercício de autoanálise como poucos artistas tiveram a coragem de propor.

    Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.

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