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    Alguém Avisa?
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Alguém Avisa?

    Reflexo da vida real, mas sem profundidade

    por Nathalia Jesus

    Embora alguns duvidem, Kristen Stewart é uma atriz de muitas facetas. Em Alguém Avisa?, ela interpretou a própria, apresentando a personagem que mais tem conexão com sua vida real e personalidade fora das telas. O que, a princípio, poderia parecer um projeto esquecível pela simplicidade do enredo, se tornou uma grata surpresa pela escolha do elenco, o desenvolvimento da história e, principalmente, a sintonia entre o trio Stewart, Mackenzie Davis e Aubrey Plaza.

    Em Alguém Avisa?, Kristen Stewart é Abby, uma mulher apaixonada que, desde a morte de seus pais, tem como alicerce afetivo seu melhor amigo John (Dan Levy) e sua namorada de longa data, Harper (Mackenzie Davis), com quem mora junto há um tempo e pretende propôr casamento na noite de natal.

    A caminho da casa da família de Harper, Abby é surpreendida com a revelação de que os pais da namorada não sabem que a filha é lésbica — e muito menos que está, atualmente, em um relacionamento sólido e duradouro com uma mulher. Harper ainda chega a pedir que Abby finja ser apenas uma amiga, iniciando uma série de situações embaraçosas e desconfortáveis nos cinco dias de feriado.

    Representatividade lésbica em diversos ângulos

    Conforme a trama se desenrola, é facilmente perceptível que três estruturas estão prestes a serem rompidas a qualquer momento: o segredo de Harper, a frágil imagem de sua família “perfeita” e a paciência de Abby. Neste ponto, é importante considerar o papel da personagem de Mackenzie Davis para o equilíbrio — e também o desequilíbrio — de todos os elementos envolvidos nesta grande mentira.

    Mackenzie Davis interpreta a personagem mais controversa e incômoda de assistir no filme dirigido por Clea Duvall. Embora a ideia de passar o natal com a família e a namorada, simultaneamente, tenha partido de Harper, o que se sucede é uma sequência lamentável de humilhações contínuas permitidas por ela, devido ao seu medo em se afirmar como uma mulher lésbica. Em meio às suas inúmeras tentativas de esconder sua verdadeira identidade, muitas pessoas são machucadas no processo, incluindo ela mesma.

    Harper, no entanto, representa um problema que pessoas LGBTQ+ conseguem assimilar com facilidade: o momento assustador de revelar a própria sexualidade e arriscar perder o afeto da família e amigos. A personagem não renega e nem odeia ser lésbica, mas tem um receio genuíno de ser excluída de seu primeiro núcleo de existência e não há nenhum discurso positivo e encorajador que seja capaz de tirar a legitimidade deste medo.

    Embora o mundo tenha avançado bastante em discussões a respeito da comunidade LGBTQ+, a homossexualidade como característica negativa continua sendo um senso comum na sociedade, e ser lésbica representa um dos piores cenários que os pais de Harper poderiam imaginar para qualquer uma das três filhas do casal. O medo de Harper em se assumir para a família é justificável, assim como o de qualquer pessoa LGBTQ+ que ainda não tenha a sexualidade revelada.

    Imperfeita, Harper é uma personagem que erra quase o tempo todo, chegando a ser irritante na maioria das vezes. Mas, sem dúvidas, se comunica melhor com o público-alvo do filme do que diversos protótipos perfeitos de orgulho lésbico que tenham passado pelos cinemas. A narrativa desconstruída e libertadora de que “basta amar a si mesmo e a própria sexualidade” é falha em muitos níveis e não funciona tão facilmente, na prática, porque pessoas necessitam de afeto — e aquele que vem da família é o mais primitivo deles. Logo, essa rejeição tende a ser mais difícil de lidar.

    Apesar disso, com todas as ramificações que motivam as atitudes de Harper, o papel desempenhado por Mackenzie Davis não é o único que se relaciona com a realidade de mulheres lésbicas e, por isso, a defesa acaba por aqui! Até porque, apesar de carregar o segredo como um fardo, sua namorada Abby e seu antigo romance, Riley, também tiveram experiências infelizes causadas por seu receio individual (e genuíno) de não corresponder às expectativas dos pais.

    O espelho de Kristen Stewart

    Protagonista da trama, Abby come o pão que a Harper amassou durante todo o feriado de natal porque, além de fingir ser apenas amiga da mulher que ela ama e divide uma vida, também é deixada de lado em diversos momentos e precisa lidar sozinha com a situação em um ambiente nada familiar. Não bastasse ser uma namorada pouco consciente dos sentimentos alheios, Harper também demonstra ser uma péssima suposta amiga.

    Para dar vida à Abby, Kristen Stewart parece não ter precisado de muito. Afinal, a personagem é quase idêntica à sua personalidade na vida real, incluindo aparência física, resiliência e sexualidade. A atriz, que sempre foi duramente criticada por sua atuação em quase 20 anos de carreira, entregou muito em um papel que, a primeira vista, não parecia tão interessante.

    Abby é muito mais parecida com Kristen Stewart do que quaisquer personagens que a atriz já tenha interpretado em sua longa trajetória no cinema e, talvez por este motivo, a honestidade da performance consegue atingir o espectador de maneira mais íntima. Sentimos mais conexão, empatia e necessidade de acolher suas dores. Independente de entendermos as inclinações de sua namorada, é impossível não desejar que Abby se preserve e vá viver sua vida com uma pessoa tão corajosa quanto ela.

    A verdade transmitida por Kristen Stewart acrescenta camadas à personagem e a torna mais querida aos nossos olhos, ao ponto em que torcemos para que tudo dê certo — mais pela felicidade de Abby do que pelo relacionamento entre ela e Harper. O mesmo desejamos a pessoa que mais a acolheu durante todo o filme: Riley, interpretada por Aubrey Plaza.

    A união entre as duas personagens se desenvolve facilmente, já que ambas foram afetadas pelas atitudes de Harper, e é muito interessante perceber como Kristen Stewart e Aubrey Plaza funcionam tão bem juntas em cena. A conexão entre elas salva uma boa parte do filme e acrescenta algumas poucas camadas extras ao enredo nada extravagante de Clea Duvall.

    A leveza que precisávamos

    Alguém Avisa? é o tipo de comédia de natal que o público LGBTQ+ esperava por muitos anos e, quando foi finalmente lançada, as problemáticas da vida real ofuscaram sutilmente a trama que deveria ser apenas leve. E obviamente, isso não significa que o filme tem alguma densidade ao tratar desses assuntos — inclusive, toda a situação de Abby e Harper é discutida com certa superficialidade. Sinceramente, esta parece ter sido a intenção de Clea Duvall: apresentar um enredo suave, tranquilo e divertido, mas com algum senso de realidade.

    Os personagens de Alguém Avisa? têm personalidades tão interessantes para nos atentarmos que, algumas vezes, Abby e Harper conseguem sair do centro da história e conceder os holofotes aos coadjuvantes. Essa percepção é reforçada por um elenco talentoso formado por nomes como Mary Holland, Alison BrieMary Steenburgen e Dan Levy, que não tiveram medo de se entregar aos seus papéis caricatos e óbvios.

    Em um ano como 2020, marcado por tragédias, Alguém Avisa? foi um presente muito bem-vindo por trazer leveza até em temáticas que seriam normalmente tratadas com intensidade. Como um dos grandes problemas nas comédias românticas, o desfecho se resolve muito rapidamente, com certa facilidade, mas está tudo bem! Nem tudo precisa ser brilhante ou trazer soluções mirabolantes, principalmente quando se trata de vida real.

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