Minha conta
    Hereditário
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Hereditário

    O sobrenatural é uma forma de loucura?

    por Bruno Carmelo

    É difícil expressar tamanha surpresa diante de um filme como Hereditário. Dentro de um gênero desgastado como o terror sobrenatural, este projeto comprova que ainda é possível ser profundamente original, combinando elementos típicos com grande pretensão visual e narrativa. Os críticos norte-americanos correram para compará-lo com O Exorcista e O Iluminado, embora a aproximação não tenha muito sentido – trata-se de filmes totalmente diferentes. Ela serve, no entanto, para ressaltar a vontade da crítica de destacar o grande impacto desta obra, e o pressentimento de que Hereditário pode marcar uma época, servir de referência, tornar-se um clássico. Críticos nunca foram bons futurólogos, mas seria ótimo se este terror ganhasse o reconhecimento que merece.

    Para explicar o que faz do projeto de Ari Aster algo tão diferente da média, vamos por partes, ou melhor, por tópicos. 1) Fuga dos clichês. Esse elemento não é suficiente para que se considere um filme excelente, mas dentro do terror, é indispensável para se sobressair. Não espere jump scares – os tradicionais sustos com seres malignos pulando em frente à câmera e a trilha sonora aumentando o volume para potencializar o impacto. A música não antecipa as ações, não há monstros propriamente ditos, nada de efeitos visuais fáceis. Os “vilões”, caso existam, são apenas os membros da família Graham, constantes vítimas de doenças mentais há gerações, reagindo à morte da matriarca. Ou seja, não existe uma “entidade maligna” vinda de parte alguma como um recurso narrativo fácil, apenas a manifestação extrema de uma dor universal, e passível de identificação com qualquer um. Isso nos leva ao próximo ponto:

    2) A reinterpretação do sobrenatural. O núcleo familiar desta história é liderado por Annie (Toni Collette), mulher cuja mãe, filha e pai sofrem ou sofreram de distúrbios psicológicos graves, e por Steve (Gabriel Byrne), homem equilibrado, simples, quase apático. À medida que fenômenos estranhos acontecem ao redor da família, Annie encontra indícios de que possam ser manifestações psicológicas, mas prefere acreditar na leitura paranormal. Steve, por sua vez, encontra cada vez mais indícios sobrenaturais, mas mantém suas crenças científicas e céticas. Eles representam duas maneiras opostas de ler as mesmas imagens, algo que persiste em todo o filme: as perturbadoras cenas de Hereditário podem ser a “prova” de uma manifestação sobre-humana, ou a simples metáfora de uma mente perturbada e afetada pelo luto. O filme não possui uma única verdade: ele se oferece como projeto ambíguo, passível de discussão de acordo com as crenças do espectador. Neste sentido, respeita a inteligência do público.

    3) O poder da sugestão. Algo que o projeto compreende brilhantemente é a importância de apelar para o imaginário de atrocidades que toda a pessoa possui em si. A cada cena assustadora – sempre metafórica, poética, próxima do pesadelo – outra é apenas sugerida em metáforas ou diálogos. Depois de nos posicionar junto da protagonista Annie, somos levados a questionar seus atos passados, e também a veracidade de seu ponto de vista. Ela estaria ficando louca? Sua visão de mundo é confiável? As confissões em um grupo de ajuda e as conversas com a amiga Joan (Ann Dowd) atingem um tom de perversidade muito mais forte do que teriam caso fossem mostradas. Ari Aster compreende algo que franquias como Jogos Mortais nunca entenderam: se você mostra demais, e repete morte após morte, o resultado é a anestesia do espectador. As diversas cenas de morte em Hereditário plantam dúvidas, mesmo diante da prova em imagens. “Isso realmente aconteceu? É sério?” deve ser uma reação constante do público, já que o diretor trabalha com sons perturbadores fora do quadro, narrações perversas e não coincidentes com a imagem, acidentes que jamais revelam plenamente as suas circunstâncias. O espectador é convidado a projetar os seus próprios medos, a enxergar aquilo que deseja – ou teme – ver. Não há nada mais assustador do que isso.

    4) Ambição estética. Este projeto funciona como terror, suspense, mas também um drama e um “filme de arte”, no sentido de buscar a originalidade das composições, a reflexão e o prazer estético, ao invés de apenas provocar sensações como a maioria dos casos de terror. O uso das casas em miniatura para dialogar com a própria casa dos Graham é espetacular, por sugerir a noção de controle externo, com os personagens sendo meras peças de algo maior – o sobrenatural ou a loucura, como preferirem. A reencenação de traumas em miniatura é ao mesmo tempo perversa e terapêutica, sincera e perturbadora, além de fornecer uma representação dentro da representação, com uma sucessão de camadas de leitura e de sentido. As rimas visuais – o vermelho do aquecedor com o vermelho do fogo, a cadeira vazia no grupo de apoio com a cama vazia da falecida, o corpo da avó com o corpo de outra personagem – produzem um efeito labiríntico. Temos imagens controladas demais (planos fixos, cortes secos) associadas a sentidos amplos demais: esta é a receita ideal para provocar um bem-vinda senso de desorientação através do uso inteligente da linguagem cinematográfica.

    5) Atuações antinaturalistas. A maioria dos filmes de terror recentes traz situações excepcionais com atores atuando da maneira realista dentro daquele contexto. Este é um caminho seguro, e plenamente funcional, adotado por sucessos como Invocação do Mal. Mas Hereditário segue no caminho inverso: parte de situações comuns – a perda de um familiar, o sonambulismo, um acidente de carro – e transforma as atuações de modo a fugirem do naturalismo. Toni Collette, excelente, cria expressões de pavor dignas dos quadros expressionistas, buscando uma deformação cênica interessantíssima – e jamais acentuada por trilha ou outros recursos. Quando o terror está nos rostos, ele não se encontra no resto da estética. Ao mesmo tempo, as pequenas deformidades da filha Charlie (Milly Shapiro) são representadas com ternura e pudor, longe do deboche, nem da monstruosidade. São Annie e o filho Peter (Alex Wolff) que recebem a oportunidade de brincar com a expressão do horror, com a maleabilidade cada vez mais plástica e horrível dos corpos.

    6) Final aberto. A conclusão pode ter frustrado muitos espectadores e críticos que se questionam, afinal, o que de fato acontece na trama. Mas a dúvida é um de seus atributos mais fortes: sem tirar o pé do acelerador, sem se preocupar em esclarecer e agradar a um público maior, o diretor Ari Aster aposta todas as fichas numa conclusão extrema e ampla. É assustador assistir a imagens tão radicais sem saber exatamente o que significam. Este não é um filme que não se fecha, e sim um projeto que escolhe se fechar de modo ambíguo: o roteiro fornece indícios suficientes para duas ou três leituras diferentes, e cabe ao espectador tirar as conclusões necessárias do espetáculo insano de corpos e almas, da loucura e do sobrenatural. Sustos e monstros são facilmente esquecidos após a sessão, mas não deve ser fácil tirar esta experiência da cabeça tão cedo. Por exigir muito de seu espectador, por provocá-lo, por fornecer algo que nunca tinha visto – pelo menos não desta maneira, com esta combinação específica de imagens, nem esta intensidade – Hereditário fornece um banquete maravilhosamente indigesto e memorável.

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    • Rafael Oliveira
      Não gostei... cultua o satanismo e eu particularmente não gosto.... Não recomendo... Agora vc está bem... Vc virou um demônio... essa é a mensagem final do filme....
    • Claudia G.
      Fujam.Horroroso
    • Luís F.
      Excelente ! Mas, como se vê pelos comentários abaixo, não é para todo mundo. Quem não gosta ou não consegue pensar deve assistir Sexta-feira Treze, filmes de zumbis ou algo do tipo. Deixe este filme para quem gosta de pensar.
    • Evanice Maria Pereira
      Já me tornei fã de Ari Aster! Trama perfeita e macabra, lindo trabalho de câmeras, planos amplos, às vezes parece que a câmera te chama e diz vá ver o que tem alí e a gente vai, super curiosa... Maravilhoso! Amei! Por mais filmes de terror com esta qualidade, sem os irritantes jump scares, banhos de sangue e ambientes escuros demais para tentar nos meter medo! 👏👏👏👏👏👏
    • Paulo R.
      Concordo e assino em baixo, muita complexidade pra mim tira o gostinho de vc ver e esperar pela tensão, eu quase durmi faltando meia hora pra acabar o filme e vi de madrugada pronto pra perder o sono com algo que me deixasse tenso, me deu sono antes de terminar kkkkk...
    • Paulo R.
      Não gostei desse filme, resolvi assisti-lo porque tinha visto o MidSommar do mesmo diretor e me agradou, mas Hereditário é arrastado na primeira hora de filme, e na segunda as cenas de impacto que realmente mexem (ou tentam mexer) com o nosso imaginário com o sobrenatural e ate com a impressão de espiritismo ligado a historia me deixaram até mais cético e de braços cruzados que o personagem do Gabriel Byrne no filme, compreendo o descrito na crítica que é um artigo de opinião também e quem gostou do filme provavelmente teve um parecer semelhante ou próximo disso, mas eu não gostei nota 4...
    • Carlos Souza
      Fantástico! Toni Collette merecia indicação ao Oscar! Pena que não é para qualquer QI !
    • Carlos Souza
      Vai assistir filme de super-herói que é pro seu QI
    • Felipe Palomo
      Perdi mais de uma hora da minha vida vendo esse filme lixo. A descrição do forista acima é totalmente válida. Vi por indicação e o filme é, monótono, várias cenas sem pé nem cabeça onde se foca na menina, poucos diálogos inteligíveis que se possa tirar proveito. O final foi ainda pior... Não teve nada melhor que os dois Invocação do Mal no estilo.
    • FSociety
      Eu não disse que não gostei do filme, mas achei ele meio bizarro pois tem muita coisa forçada ali, que tipo de pessoa não tenta fugir de situações como aquelas? O diretor forço demais nesse lance deveria ter colocado ao menos o namorado da garota tentando fugir depois de tanta bizarrice., isso chega a ser irreal.
    • Andre Luis
      Que isso, cara. Não é porque você não gostou que quem gostou é perturbado. Midsommar não é 5 estrelas, mas chega fácil em 4 e tem conceitos muito interessantes, que raramente aparecem nas produções do gênero.
    • Andre Luis
      Concordo. Achei esse melhor que Midsommar, que é também um filme que se destaca por sair do lugar comum e apresentar conceitos novos para o gênero, que muitas não entendem.
    • FSociety
      Midsommar? Midsommar foi um filme bizarro cheio de imagens pra chocar o publico fraco e só, não teve nada de mais quem curtiu são pessoas doentes, pessoas perturbadas, não recomendo.
    • Alessandra Jardim
      Concordo plenamente! O grande lance desse filme é o incômodo. Adorei
    • Alessandra Jardim
      A bruxa é muito bom. Deixa um incômodo muito sinistro!
    • Alessandra Jardim
      Um dos melhores filmes de terror que já vi na vida. Junto com Midsommar, Ari Aster mostra como sabe assustar sem usar o convencional, aliás, usa algo pior que sustos, o incômodo. Hereditário é um filme complicado de se entender e digerir, caso o indivíduo não esteja com a mente aberta ou esteja esperando um filme de terror convencional, o que é óbvio que não é, rs!
    • Carlos Filipe
      excelente filme, dos melhores que já vi. Recomendo!
    • Cristina Morais
      O filme se divide em duas partes: até a decapitação da Charlie e depois. Até essa cena eu tava assistindo de boa. Depois ficou difícil digerir qualquer informação. Filme espetacular. Tenso, sombrio, profundo. Não é filme para todos os públicos. Se vc gostou de O Iluminado pode ir sem medo de se arrepender. Se vc prefere A Freira ele não é pra vc. Questão de gosto. Atuações impecáveis, fotografia na medida, trilha sonora encaixa perfeitamente. Pra piorar, se vc for mãe e assistir, vai querer morrer pela empatia com a Annie. Quando acontece o acidente no poste eu queria entrar no filme e pegar o menino no colo pra dizer que ia ficar tudo bem. Mas não ficou. Ok. Acabei com o meu fim de semana. Mexeu com meu psicológico. Filme nota 1000.
    • Hyuuga-Chan
      Pra mim isso sim é terror! O filme me deixou tensa e arrepiada o tempo inteiro. E sinceramente, acho isso mil vezes mais desconfortável do que uma jumpscare atrás da outra. Tem filme de terror que não possui enredo algum. Mas nesse eu vi conteúdo. A gente realmente quer saber o porquê das coisas acontecerem e tem boas justificativas para isso. Não que todo filme de terror precise de justificativas. A atuação da Annie foi de ficar de boca aberta. No início do filme não pensei que ela seria uma personagem tão marcante, mas depois me deixou sem palavras!O que eu mais gostei foram das cenas em que algo sobrenatural acontecia. Sem movimentações de câmeras exageradas e música estupidamente alta. O sobrenatural acontecia na nossa cara, como se fosse natural. E isso dava uns arrepios do caralho.Lembrando, não é filme de tomar susto, apesar de ter alguns. É filme pra te deixar tenso e apreensivo, igual aos personagens.
    • Amadeo Santos
      Em partes concordo com quem fez a crítica e em partes não entendi porque quem fez a crítica ficou com receio de falar que o filme trata, sim, de feitiçaria, ligações com o maligno e é isso que rege o filmeFicou escancarado o quão perigoso é cair na teia do fanatismo religioso seja por algo bom ou algo ruim onde se opta por tratar do maligno, sacrifícios humanos e o desdém em relação ao que os seres humanos cultivam como família, amizade, etc.; entidades não se importam com isso, querem manipular, dominar, destruirO filme é bem amarrado e a interpretação da protagonista, realmente, é excelente (o elenco manda bem no geral)Interessante o quão somos vulneráveis em situações críticas e vítimas frágeis de manipuladores, que, sempre, inicialmente, se apresentam como anjos a nos ajudar, porém são perversos nos usando para seus intentos; ao entrarmos em determinadas situações, nem sempre temos capacidade de sair dela e ainda podemos levar outros para o fundo do poço ou algo piorA entidade manipula todas as ações com a ajuda de seus adeptos mais fervorosos, inclusive a matriarca e é muito interessante e assustadora a fala de Joan no final do filme a respeito dos lucros que os seguidores da entidade recebem (algo que é mostrado no meio do filme também)Cultos como esse não são comuns pelo mundo se formos considerar o quantitativo da população mundial, contudo existem aos montes e provocam muitos, muitos, estragos e ficou o alerta no filmeNão é apenas um filme de terror, mas uma mensagem também; mas só enxerga quem não tem medo de encarar verdades que existem desde que o mundo é mundo seja para o bem, seja para o mal; no filme vemos uma verdade do mal e muito bem vista
    Back to Top