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    A Revolução em Paris
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Revolução em Paris

    Às armas, cidadãos!

    por Bruno Carmelo

    Este drama histórico busca mesclar duas concepções muito distintas de produção cinematográfica: por um lado, A Revolução em Paris possui um orçamento impressionante, possibilitando reconstituição impecável dos figurinos e cenários do século XVIII, filmagem em locações reais, centenas de figurantes e um elenco que inclui vinte dos maiores atores franceses da atualidade. Por outro lado, ele se recusa a oferecer o prazer do espetáculo. Em outras palavras, o diretor Pierre Schoeller não investe na linearidade expositiva dos fatos que levaram à Revolução Francesa, nem recorre ao fetiche no sangue derramado, aos heroísmos e martírios. Este seria um raro “filme de arte” com estrutura de superprodução, ou talvez uma superprodução que visa provocar os sentidos do espectador ao invés de ensiná-lo.

    O resultado surpreende por romper com as narrativas típicas de projetos históricos. A rememoração de fatos consagrados costuma ser acompanhada de um olhar frio e um respeito sepulcral pelos nomes famosos. Aqui, no entanto, privilegia-se o ponto de vista do povo em detrimento daquele dos governantes. Luís XVI (Laurent Lafitte) torna-se uma marionete do poder, enquanto os verdadeiros motores da ação são um grupo de protagonistas que vão dos legisladores como Robespierre (Louis Garrel) e Marat (Denis Lavant) às lavadeiras, faxineiras e pequenas comerciantes vivendo miseravelmente em Paris. O espectador enxerga apenas o que as classes desprivilegiadas enxergam, conhecendo o mundo através de seus olhos. Quando a Bastilha cai, descobrimos o evento por um novo feixe de luz que enfim atinge o casebre onde vivem Françoise (Adèle Haenel) e Basile (Gaspard Ulliel).

    Isso significa que o filme se concentra nos bastidores da revolução – as reuniões, debates e discussões necessárias para levar o povo às ruas – ao invés da ação em si. Schoeller demonstra prazer em filmar diálogos extraído dos anais da época, transformando frases de efeito em conversas cotidianas. Felizmente, ele conta com um elenco capaz de dessacralizar falas como “Não quero perder a minha vida a ganhá-la” e “Vocês foram magníficos como um homem sem Deus”. Deste modo, provoca-se um efeito tanto de estranhamento quanto de aproximação com o linguajar da época. A ausência de protagonista único e os diversos saltos no tempo também provocam a sensação curiosa de estar ao mesmo tempo perto demais (por sentir ao impacto da revolução em diversas pessoas) e distante demais (por não se aprofundar em nenhuma delas). De qualquer modo, é louvável o esforço de retratar a coletividade anônima como protagonista de um processo histórico.

    Além disso, Schoeller se excede na construção de metáforas visuais que representam a luta e as dores do povo muito melhor do que cenas épicas com gruas e centenas de figurantes. O diretor usa a imagem com plumas, fogo e neve, retira completamente o som durante um enfrentamento, retrata uma batalha inteira pelo encontro entre inimigos numa escadaria. Trata-se de soluções engenhosas, metonímicas, muito bem enquadradas e iluminadas, visando provocar uma sensação da grandiosidade da Revolução Francesa sem precisar ilustrá-la enquanto tal. O ostensivo aparato de produção serve a criar um ambiente de plausibilidade, mas jamais chama atenção excessiva para si mesmo – algo que afugentou tantos críticos e espectadores, cujas expectativas apontavam para o espetáculo épico ao invés de um mosaico de intimidades.

    Talvez o principal mérito de A Revolução em Paris seja a sua própria existência, ou seja, o fato de saber que uma indústria de cinema como a francesa está disposta a investir 17 milhões de euros num blockbuster anti-blockbuster, um projeto visando ocupar a importante lacuna que separa os grandes projetos populares do pequeno filme hermético destinado a festivais. Schoeller comprova a capacidade de unir poesia a um impressionante rigor documental, sem medo de desagradar o público por suas escolhas inusitadas de montagem e narrativa. Pela coragem e pela beleza das imagens, o projeto se sobressai facilmente em meio a tantas recriações supostamente objetivas sobre uma “verdade histórica”. Além disso, estabelece um comentário importante sobre o que resta de participação popular na política contemporânea, relembrando as estratégias democráticas utilizadas por coletivos de séculos para enfrentar as forças opressoras do sistema.

    Filme visto no Festival Varilux de Cinema Francês, em junho de 2019.

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    Comentários

    • Sergio
      A despeito de todas as considerações (até pertinentes!) do crítico, filme chaaato por demais! Desculpem-me... Cinema, na minha mais modesta opinião, tem antes de tudo que fisgar o espectador, coisa que nem de longe acontece neste caso... Uma pena!
    • Renato Ryce
      Analise perfeita, somando-se ao fato de que para quem nao conhece a historia francesa a fundo nem é fluente na ligua perde muito do contexto.
    • Isabelle
      Pois é, há uma contradição que parece deliberada: porque tanto cuidado estético se o que se oferecem são interpretações de discursos? Se era para conhecer discursos de Marat, Danton e Robespierre, sem contexto, eu preferia lê-los a vê-los declamados. Não emociona, não envolve - nem quando pretende, com a simbólica derrubada da torre da Bastilha - porque não transmite verdade. Será mesmo que houve uma participação tão qualificada do povo nas decisões da Assembleia? Se houve, regredimos muito... Preciso da opinião de um/a historiador/a, porque a narrativa não convence. A figura forte de Laurent também não parece combinar com o fraco Louis XVI. Enfim, o filme nada me ofereceu de novo sobre o tema, a não ser desconfiança e um certo cansaço físico.
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