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    Sem Rastros
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Sem Rastros

    Naturezas selvagens

    por João Vítor Figueira

    A cineasta Debra Granik entrega mais um drama contemplativo que gravita em torno do amadurecimento de uma jovem personagem feminina que vive situações incomuns para alguém da sua idade. Em Sem Rastros, como no premiado Inverno da Alma (2014), último filme dramático da diretora, a jornada é tão importante quanto o desfecho e a compaixão da realizadora por seus personagens é o que dá dinamismo emocional a um filme de sentimentos reprimidos, gestos singelos e silêncios eloquentes.

    Roteirizado por Granik e Anne Rosellini com base no romance My Abandonment, de Peter Rock, o longa-metragem acompanha com dignidade e respeito os percalços internos e externos de um pai e uma filha em uma rotina incomum. Will, vivido por um intenso Ben Foster, é um veterano da Guerra do Iraque que sofre de stress pós-traumático e decidiu se retirar da sociedade organizada. Para isso, criou uma estrutura complexa de vida na densa mata de um parque florestal em Portland, Oregon. Seu estilo de vida sobrevivencialista, regrado e em sintonia com o ambiente que o cerca é compartilhado por sua filha de 13 anos, Tom, defendida com muito talento por Thomasin McKenzie. Um dia Tom é avistada por uma pessoa e, com a chegada da polícia e assistentes sociais, os dois são forçados a viver em uma casa comum, com um emprego comum para o pai e uma vida escolar comum para a filha.

    A maneira como Will e Tom vivem podem suscitar comparações com Capitão Fantástico, mas este longa-metragem tem uma sensibilidade mais sutil e conflitos claros, mas menos catárticos do que no filme estrelado por Viggo Mortensen. Há ainda uma narrativa enigmática proposta por Granik na maneira vagarosa como são revelados os detalhes da situação vivida pelos protagonistas. A diretora evita espetacularizar a situação dos dois. Leva um tempo até se descobrir que Will é um veterano e alguns detalhes nunca são revelados completamente (como a identidade da mãe de Tom, por exemplo). Ao espectador, é exigida uma postura mais ativa, com bastante espaço para se supor uma série de coisas à respeito das lacunas que Granik e Rosellini deixam vagas.

    A questão da liberdade individual ganha espaço em duas frentes no filme. A primeira tem a ver com a maneira como o Estado trata os dois, classificando como "sem teto" duas pessoas que levavam uma vida perfeitamente funcional e sustentável. Não é à toa que quando é obrigado a se conformar com a vida em sociedade, é oferecido para Will um trabalho mecânico e um contato "cordialmente forçado" com a religião. A fotografia de Michael McDonough dá conta de explorar os contrastes das etapas diferentes das vidas dos protagonistas. Inicialmente é a exuberância do verde intenso da floresta que, mesmo banhado por uma luz fria, toma de assalto a retina. Em seguida as cores sem vida da casa para onde Will e Tom são enviados ajuda a reforçar que o conceito de lar é mais complexo do que uma estrutura de paredes. A segunda noção de liberdade está na maneira como o bem estar de Tom precisa superar os traumas de seu pai. Por mais que haja amor entre os dois, e esse sentimento é representado com uma rústica afabilidade, chegará o momento em que mesmo o laço de sangue não será capaz de conter a autonomia de outro ser. E é assim que a vida deve ser.

    O meticuloso efeito que balanceia tranquilidade e potência de forma intrigante é explicado pelas performances precisas dos protagonistas de Sem Traços. Conturbado, mas sem as explosões de A Qualquer Custo, Ben Foster demonstra um grande controle de um personagem marcado por fantasmas misteriosos que nunca conhecemos totalmente. Em plena sintonia com Foster, mas representando uma espécie de espelho imaculado do pai, Thomasin McKenzie tem como o maior trunfo de sua atuação o naturalismo como encara com desenvoltura as cenas na floresta, a melancolia dos dias sob a tutela do Estado e futuro incerto com pai depois que os dois fogem. Suas reações são exatamente o que se esperaria de uma pessoa que passou por aquele tipo de situação.

    Há muita sincronia na maneira como os dois dividem tarefas, dividem os mesmos espaços, cuidam um do outro. Mas aos poucos fica claro o quanto esta dinâmica prejudica a menina e o quanto ela não precisa herdar o peso que seu pai carrega na alma. Aí reside um grande dilema. Em qual medida o apego de Will por Tom deixa de ser saudável para se tornar um impedimento do desenvolvimento da garota? Granik apresenta as ambiguidades e contradições dessa relação de forma honesta e entrega um desfecho justo e tocante para o impasse.

    É desnecessário comparar a performance McKenzie com a de Jennifer Lawrence em O Inverno da Alma, mas o fato é que, assim como a J. Law iniciante, McKenzie também tem potencial para conquistar cada vez mais espaço em Hollywood.

    Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.

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    Comentários

    • Maria C
      O filme prende a atenção do começo ao fim e apesar da lentidão em nenhum momento me cansou. Muito bom e com o final que eu estava torcendo que fosse.
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