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    A Corte
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    A Corte

    Regras de conduta

    por Bruno Carmelo

    É difícil definir, durante a maior parte de A Corte, qual é exatamente o tema abordado ou o conflito central da história. Por um lado, o rígido juiz Racine (Fabrice Luchini) está julgando um infanticídio, mas o roteiro ignora as regras dos filmes de tribunais, evitando o suspense e os detalhes da investigação. Por outro lado, Racine descobre entre os jurados a presença de Ditte (Sidse Babett Knudsen), médica por quem já foi apaixonado, mas não há vestígio de romantismo na aproximação dos dois. Afinal, o que pretende mostrar o diretor Christian Vincent? Existe relação entre os dois conflitos tão diferentes?

    A resposta começa a se desenhar de maneira lenta, mas certeira. Este é um filme interessado menos no destino dos personagens do que em suas crises presentes. Pouco importa se Racine e Ditte ficarão juntos, ou se o pai da criança realmente matou o recém-nascido aos chutes. O foco está na tensão, no cansaço, no estado de espírito que afeta profundamente este juiz. Entre a paixão pela jurada, a exaustão provocada por uma gripe, a dor do divórcio recente e a moralidade implacável, ele combina sentimentos de frustração e raiva, letargia e desejo sexual.

    Portanto, as ambições psicológicas deste “filme de personagem” são imensas, enquanto as pretensões estéticas são de uma humildade ímpar. Vincent trabalha em luzes frias, planos e contraplanos, cenas abertas para o julgamento e closes nos momentos de intensidade emocional. Alguns movimentos de câmera, inclusive, são bruscos e desajeitados, do tipo que certamente seria cortado na sala de edição da maioria dos projetos. No entanto, o diretor parece ter mantido essas tomadas pela qualidade das atuações e do texto. Poucos atores teriam tantos recursos quanto Luchini para tornar o protagonista verossímil, mas o veterano executa a tarefa com naturalidade. Knudsen também não se sai nada mal em contraponto ao juiz.

    Enquanto A Corte se delicia com a estrutura de um road movie estático, começa a se desenhar um apaixonante retrato dos códigos e regras da vida em sociedade. O diretor aborda cada passo da educação, da diplomacia, dos jargões ligados à idade, ao sexo, à profissão. O meio extremamente regrado dos tribunais de justiça é retratado com suas repetições, seu vocabulário típico, suas frases de efeito e suas implacáveis relações hierárquicas. Descobre-se quem entra primeiro na corte, quem se senta primeiro nas cadeiras, quem deve falar, como se dirigir a um advogado, a um juiz etc. Ao mesmo tempo, as questões de poder entre Racine e Ditte se invertem: inicialmente, ela era a médica cuidando de um paciente à sua mercê, no meio médico igualmente repleto de regras, e depois é ele que comanda. A presença da filha adolescente de Ditte também apresenta novos códigos de comportamento incompreensíveis aos adultos.

    Mesmo fora do ambiente de trabalho, percebe-se que todos estão sendo julgados por sua conduta, sua postura, seus relacionamentos amorosos, ou a cor do cachecol e a maneira de encostar a mão num paciente doente. A Corte (excelente título nacional), entendido como palácio e como flerte, preocupa-se com a questão da imagem, da dificuldade de se inserir na sociedade devido às expectativas de cada meio específico. Por esta razão, o romance se desenvolve pouco, a investigação judicial termina de modo frustrante. O interesse está escondido, microscopicamente, nos instantes de silêncio e insinuações trocados pelas pessoas no tribunal. Mesmo a rápida presença de um vestido branco, na conclusão, se transforma numa pérola de significados latentes.

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