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    Pinóquio por Guillermo del Toro
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Pinóquio por Guillermo del Toro

    O amor vence o fascismo

    por Lucas Leone

    Quando falamos de animação em stop motion, imediatamente nos lembramos de O Estranho Mundo de JackA Fuga das Galinhas ou Coraline e o Mundo Secreto. É uma arte meticulosa que começa com a fabricação de bonecos e objetos articulados, posteriormente dispostos em um set. Os movimentos são encenados e captados pela câmera quadro a quadro, para enfim serem encadeados na montagem. É um processo que demanda tempo e dinheiro. Mas nada disso deteve Guillermo del Toro.

    Foram mais de 10 anos até que o diretor conseguisse lançar sua versão de Pinóquio, indicada ao Oscar 2023. Primeiro, porque o orçamento milionário assustou os grandes estúdios e fez com que o projeto ficasse à deriva antes de ser adquirido pela Netflix. Segundo, porque del Toro nunca entregaria um filme aquém de seu perfeccionismo técnico – em particular uma história que, como o próprio revelou, o acompanha desde a infância.

    Esqueça boa parte das memórias afetivas que o clássico da Disney de 1940 desperta. E nem ouse pensar no live-action de 2022 que traz Tom Hanks como Gepeto. O que encontramos aqui é a visão singular, excêntrica, fantástica, tão espirituosa quanto sombria, que o cineasta mexicano já tinha mostrado em O Labirinto do Fauno e A Forma da Água.

    Qual é a história do novo Pinóquio?

    Netflix

    Assim como o desenho da Disney, o de del Toro é um musical e tem como base os contos de Carlo Collodi, publicados como livro em 1883. Dessa vez, a trama se passa em um cenário que o autor italiano jamais poderia prever: a ascensão do fascismo em seu país e a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Embora o momento não seja dos melhores para ninguém, consegue ser pior no caso de Gepeto, um artesão que perdeu o filho Carlo há cerca de 20 anos, por causa da Primeira Guerra (1914-18), e nunca se recuperou.

    Certa noite, tomado pela revolta, ele decide construir um boneco de madeira à semelhança de Carlo. O que ele não imaginava é que seu trabalho ganharia vida com um passe de mágica – e que seria o completo oposto de seu filho. Pinóquio, assim batizado pela Fada da Floresta que o enfeitiçou, é teimoso, mentiroso, desobediente. Seu comportamento faz com que se afaste de casa e enfrente os mais variados perigos – que vão de um dono de circo trambiqueiro a um monstro marinho faminto.

    Em nome do pai, do filho e do fascismo?

    Netflix

    A sinopse corresponde, no geral, ao que se espera de uma adaptação do texto de Collodi. Porém, a primeira – e talvez mais relevante – distinção esteja no contexto histórico. Ao deslocar sua narrativa para o período da Segunda Guerra, del Toro se aproveita dos ares de autoritarismo e retidão moral para dar um tom mais adulto, mais denso ao conto infantil.

    Além de ser confrontado com as ideias de fama e riqueza – que existem no texto original e no filme da Disney –, Pinóquio se choca agora com duas forças poderosas: a fé e a ordem. Em um dado momento, enquanto ajuda Gepeto a terminar o crucifixo da igreja, ele pergunta: "Por que amam Jesus, e não me amam? Nós dois somos feitos de madeira." Gepeto dá uma resposta genérica, demonstrando que, por vezes, nem mesmo quem está inserido sabe explicar por que o “amor ao próximo” não se estende a todos.

    Quanto à ordem, está diretamente associada ao fascismo. Del Toro retrata um dos principais pilares da ideologia totalitária: o apelo à juventude para que se juntasse à causa, igualmente adotado pelo nazismo alemão. Desde que encontra Pinóquio pela primeira vez, o personagem conhecido como Podestà – título atribuído pelos fascistas aos prefeitos das comunas italianas – tenta recrutá-lo para o campo militar juvenil. E consegue na segunda metade do longa.

    Os fãs da animação da Disney devem lembrar que o penúltimo desafio do boneco é não ser transformado em burro na Ilha dos Prazeres, após escapar circo de Stromboli. Na versão de del Toro, enquanto Pinóquio tenta se livrar do picadeiro do Conde Volpe, o "emburrecimento" lhe é apresentado na forma de doutrinação, mascarado pelos ideais de glória, honra e pátria. Felizmente, ele entende que essa agenda serve mais como retrocesso do que avanço.

    O gabinete de criaturas de del Toro

    Netflix

    Se há algo que del Toro domina com maestria e que se tornou sua assinatura, é idealizar mundos povoados por seres peculiares e extraordinários. Com Pinóquio, por se tratar de uma obra atemporal e explorada nos mais variados formatos, o toque do cineasta deixa tudo mais interessante. Apesar de alguns personagens serem conhecidos do público graças à Disney, a personalidade e a aparência deles são completamente diferentes.

    A começar por um Pinóquio menos humano e mais um brinquedo entalhado como de fato é. Seu corpo é formado por dois pedaços de madeira que fazem as vezes de cabeça e tronco, com os braços e pernas feitos de gravetos. Ele é todo remendado, tem pinos de ferro nas costas e apenas uma orelha. É novamente um traço da abordagem madura, menos colorida e visualmente mais instigante, que del Toro traz para o imaginário infantil que se cristalizou em torno de Pinóquio.

    O Grilo Falante ganha um nome próprio: Sebastian J. Cricket. Também não é mais uma criatura que usa cartola, fraque e gravata. Agora ele está mais para Vida de Inseto, todo azul, meio fluorescente, com antenas e asas. O personagem, inclusive, funciona como alívio cômico: é muito inteligente, mas sempre se dá mal e termina esmagado. E o quão hilário é ver Ewan McGregor, o dublador do Grilo, não conseguir passar do segundo verso de seu solo musical?

    Ainda no gabinete de criaturas formidáveis criadas por del Toro, encontramos a Morte e a Fada da Floresta. Apesar de serem irmãs, têm aspectos bem distintos: a primeira é uma espécie de esfinge, com chifres laterais enormes repletos de olhos; a segunda, que poderíamos tomar como uma equivalente da Fada Azul, tem asas brilhantes e uma cauda que lembra a de uma sereia, mas é pontuda como a de um escorpião.

    Todos esses seres refletem não só a mente fora da curva de del Toro, como seu primor e cuidado com cada detalhe do stop motion, seja ligado aos personagens, seja ao deslumbrante cenário. Ao mesmo tempo que não descarta uma certa magia que combina mais com a Disney, o diretor imprime sua paixão por aquilo que foge ao padrão da dita normalidade, que é taxado como feio, desviante e condenável. Assim como fez em O Beco do Pesadelo.

    Todos os caminhos levam ao amor

    Netflix

    No filme de del Toro, os problemas que afligem a todos nós não são atenuados. Ao contrário, sentimos a dor dos personagens – e os personagens também sentem. Gepeto, por exemplo, caiu em uma depressão profunda após a morte do filho, tendo abandonado seu ofício e recorrido ao álcool para lidar com a realidade. Já Pinóquio começa um menino para lá de desbocado, grosseiro, debochado e desrespeitoso.

    Ao longo de sua jornada para salvar um ao outro e voltar para casa, os dois aprendem um bocado, chegando a uma conclusão que nada mais é do que a aceitação – de si mesmo e do próximo. Pinóquio entende que nunca será igual a Carlo, por mais que se esforce. Gepeto entende que Pinóquio nunca será igual a Carlo e que isso não o impede de amá-lo imensamente.

    Para o povo do vilarejo, também fica o recado: o amor vence o fascismo.

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