Críticas AdoroCinema
5,0
Obra-prima
Ataque dos Cães

Desejos reprimidos em uma masculinidade problemática

por Bruno Botelho

É nítido como a Netflix conquistou respeito dentro da indústria cinematográfica nos últimos anos com suas produções originais. Antes olhada com antipatia pelo fato de ser uma plataforma de streaming disputando o mesmo lugar em premiações que filmes lançados exclusivamente nas salas de cinema, a empresa se mostrou uma opção interessante para cineastas renomados executarem seus projetos com liberdade criativa. Os exemplos vão de Alfonso Cuarón com Roma (2018), Martin Scorsese com O Irlandês (2019) a, mais recentemente, David Fincher com Mank (2020). 

Jane Campion é uma das diretoras mais respeitadas das últimas décadas e, doze anos depois de seu último filme lançado (Brilho de uma Paixão, de 2009), ela retorna com um dos melhores filmes de 2021: Ataque dos Cães ("The Power of the Dog") da Netflix, em que ela usa o faroeste para examinar poder, inveja, solidão e, principalmente, desejos reprimidos. 

Ataque dos Cães conta a história de Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), dois irmãos ricos e proprietários da maior fazenda de Montana. Enquanto o primeiro é brilhante, mas cruel, o segundo é a gentileza em pessoa. A relação dos dois vai do céu ao inferno quando George se casa secretamente com a viúva local Rose (Kirsten Dunst). O invejoso Phil fará de tudo para atrapalhá-los.

As sutilezas poderosas de Jane Campion em Ataque dos Cães 

"Queria dizer como é bom não estar sozinho"

Ataque dos Cães é ambientado em Montana no começo do século vinte (em 1925) e logo de cara o filme deixa evidente as diferenças entre os irmãos Burbank: Phil e George. O primeiro é uma pessoa arrogante e imponente que, mesmo tendo formação superior em filosofia, escolhe levar a vida de vaqueiro – como foi ensinado por Bronco Henry, uma espécie de figura paterna e mentor para os dois. Enquanto isso, o segundo é uma pessoa quieta e educada, que não demonstra muito interesse nesta vida de cowboy. 

Colocadas as cartas na mesa, a diretora Jane Campion mostra sua maestria em trabalhar com as sutilezas e simbologias por trás de seus personagens, mostradas através de gestos, olhares e até mesmo o silêncio.

O foco dela é em Phil Burbank, um homem sozinho por causa de sua escolha pelo poder, que precisa manter uma postura de maculinidade (tóxica) esperada pela sociedade e não demonstrar suas fraquezas – por isso aparece de maneira ignorante. Campion tem um personagem fascinante em mãos e, com ajuda da poderosa e agressiva atuação de Benedict Cumberbatch, progressivamente desmascara suas aparências. Assim, Cumberbatch se torna a força motriz de Ataque dos Cães, na melhor atuação de sua carreira – que deve lhe render indicação ao Oscar, o que ele conseguiu anteriormente em O Jogo da Imitação (2014).

Tudo começa quando George se casa com Rose, mulher que Phil trata de forma rude, além de humilhar o filho Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee) com brincadeiras machistas. A partir deste casamento, se revela a camada de inveja que Phil sente de George, pois seu irmão conseguiu um amor e pode se ver livre da solidão, coisa que o "durão", no fundo, gostaria de ter.

O roteiro de Jane Campion, adaptado do livro de Thomas Savage, se aproveita inteligentemente dessa inveja para ironizar muitas das atitudes problemáticas e infantis que ele comete contra Rose. Depois de Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst é o maior destaque do filme com uma personagem que muda de status social e se sente constantemente ameaçada pela presença de seu cunhado – especialmente quando Phil começa a se dar bem com Peter e ensina o jovem a ser vaqueiro como ele.

Quem são os cães? Os desejos reprimidos pelas aparências e poder

"Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão"

Ataque dos Cães é baseado no romance homônimo escrito por Thomas Savage e publicado em 1967. Savage era um escritor dos Estados Unidos mais conhecido por seus romances de faroeste e por ser um homem gay – ainda que não abertamente assumido na época. Por isso, ele baseou algumas partes da história e personagens em sua própria experiência como adolescente crescendo em um rancho em Montana.

Considerando o enredo do livro, Jane Campion é uma escolha ideal para essa adaptação. O Piano (1993) rendeu a ela tanto o Oscar de Melhor Roteiro Original quanto a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e fala sobre repressão, libertação e desejo – temáticas fortemente encontradas em seu novo trabalho para a Netflix.

Em um ambiente e contexto social hostis, a diretora discute e critica a masculinidade enquanto apresenta relações de poder e desejo dentro de subtexto homoerótico, coisa que vimos em O Segredo de Brokeback Mountain (2005). Mas, ao contrário da produção estrelada por Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, a repressão aparece de forma ainda maior, e Campion usa de pequenos detalhes importantes e simbolismos para essa representação na tela. Isso exige a atenção total do público em diálogos e expressões que contam a história. 

Com auxílio da cinematografia de Ari Wegner para compor belas paisagens e construir esse clima de faroeste dramático ao lado da trilha sonora minimalista Jonny Greenwood, a diretora passeia entre o sublime e o assustador, o poder e a repressão que constroem a complexidade única dessa narrativa.

O final de Ataque dos Cães é marcado por uma reviravolta surpreendente e sombria, que não necessariamente explica o que acontece para o público, mas encerra perfeitamente seus acontecimentos e corresponde ao mostrado logo nos primeiros minutos. 

O título do longa parte do Salmo 22 da Bíblia, mais precisamente do trecho: "Livra-me da espada, livra a minha vida do poder do cão". Entendemos que isso serve como um aviso de que perigo está em toda parte, batendo em nossa porta. Afinal, quem são os cães? Cabe a cada um tirar sua própria conclusão. Jane Campion reforça alguns em mais de duas horas.

Vale a pena assistir Ataque dos Cães?

O retorno de Jane Campion para um longa-metragem não poderia ser mais interessante e poderoso, com Ataque dos Cães se posicionando facilmente como um dos melhores filmes de 2021. Embalado pela atuação inquietante de Benedict Cumberbatch, o filme discute em muitas camadas as relações de poder e a repressão do desejo impulsionada por uma visão de masculinidade problemática enraizada na sociedade.