Críticas AdoroCinema
1,5
Ruim
Missão no Mar Vermelho

Parem de salvar a África

por Bruno Carmelo

O novo filme de ação da Netflix é um tanto surpreendente, ainda que não pelos melhores motivos. É difícil cogitar que os grandes estúdios tradicionais, acostumados a desenvolver seus projetos durante anos, pudessem apostar num roteiro como este e levá-lo aos cinemas em pleno século XXI – Missão no Mar Vermelho é tão cru que parece ter sido filmado a partir do primeiro tratamento do roteiro. Mais grave do que isso, ele evoca um humanismo colonialista abandonado há muito tempo pelas lutas sociais e pelas melhores representações cinematográficas de conflitos sociais. O filme remete à época da boa consciência norte-americana e europeia, quando ajudar os países pobres significava “salvá-los”, enviar um herói capaz de fazer aquilo que os locais não poderiam executar por si próprios. Em outras palavras, trata-se de uma ajuda que reforça a suposta superioridade dos intervencionistas em relação aos locais.

Esta hierarquia reaparece sem qualquer nuance em uma das primeiras cenas, quando um garotinho negro está brincando numa plantação, prestes a ser sequestrado por vilões. Os pais da criança não estão dispostos a salvá-la (eles permanecem dentro de um carro, com ar preocupado), mas o Capitão América em pessoa, Chris Evans, interpretando um corajoso israelense, decide correr em busca do garotinho ingênuo e devolvê-lo à família são e salvo, passando despercebido pelos inimigos como se tivesse poderes mágicos. Ao longo da narrativa, Ari Levinson (Evans) terá novas oportunidades de salvar o mesmo garotinho e centenas de outros judeus da Etiópia, ameaçados de morte pelas milícias e por grupos muçulmanos. A decisão de Ari e seus colegas em abrir um falso hotel à beira-mar para servir de fachada à fuga de refugiados é apresentada como ato de coragem e altruísmo destes israelenses e norte-americanos (representados por Greg Kinnear).

Mesmo assim, é curioso que o roteiro forneça pouquíssimas informações sobre o passado de Ari e sua personalidade. Ele escolhe um grupo de “especialistas” para a missão numa sequência com pretensões cômicas, porém jamais descobrimos o que estas pessoas realmente são capazes de fazer, visto que seus conhecimentos específicos são ignorados durante a trama. Eles salvadores se transformam num grupo coeso, cooperando com pouca divergência interna (as brigas entre Ari e Sammy logo se convertem em respeito mútuo). Pior ainda é o desprezo dos criadores pelos próprios etíopes. Com exceção de uma curta cena em que uma mulher reclama de sua condição de vida, os judeus não ganham protagonismo, não adquirem voz, não têm suas distintas personalidades abordadas pela trama. As vítimas são reduzidas a uma massa indistinta de pessoas precisando de ajuda. O espectador atravessa mais de duas horas sem conhecer um único dia na vida destas pessoas, seus pensamentos políticos e religiosos, sua opinião sobre a arriscada travessia do Mar Vermelho rumo a Jerusalém.

Esteticamente, o filme dirigido por Gideon Raff tampouco impressiona. As imagens são reduzidas ao fetiche do exotismo: as praias são construídas como cenários paradisíacos, enquanto as moradias pobres dos etíopes convertem-se em cortiços inabitáveis. Planos aéreos reforçam a beleza das paisagens, enquanto planos de conjunto reforçam a beleza do elenco, com destaque tanto para o músculo dos rapazes quanto para o decote de Haley Bennett. Mesmo os rostos invariavelmente sofridos dos refugiados destoam das imagens reais apresentadas no final da narrativa, quando se revela que ainda havia espaço para brincadeiras entre os etíopes, além da manifestação da música e da dança locais. No entanto, Raff recusa-se a descrever os coadjuvantes para além da posição de vítimas. O cineasta trabalha com a permanente idealização tanto do prazer quanto do sofrimento, tanto do heroísmo quanto da vilania.

Como diria um antigo vencedor do Prêmio Nobel ruandês: “Parem de querer salvar a África. Deem-nos os instrumentos necessários para que salvemos a nós mesmos”. Recentemente, Histórias CruzadasGreen Book – O Guia e mesmo clássicos como Conduzindo Miss Daisy foram severamente criticados pela visão de que os negros e pobres precisam da boa vontade dos brancos ricos para saírem de suas situações adversas. Poucos anos depois, Missão no Mar Vermelho talvez mire a tragicomédia verídica de ótimos filmes como Argo, mas erra completamente de alvo: seus protagonistas não eram os bravos e musculosos israelenses, e sim os judeus etíopes, pobres e negros, que após serem colocados nos botes improvisados, ainda precisavam seguir um longo caminho em busca de um destino melhor. Esta era a real história por trás dos eventos: a superação estrutural, não um ato de loucura de ajudantes externos. Ao invés de acompanhar estas pessoas – uma única família local, um único casal, que fosse – Raff prefere se ater à imagem comicamente superficial do pai herói que, após ser rejeitado pela filha pequena por trabalhar demais, de repente se vê incluído novamente no desenho da filha, ao lado da mamãe. Ao final, não foram os etíopes que a narrativa salvou, e sim o ego do herói sedutor, destemido e bom pai de família.