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    Cara Gente Branca: Critica da 3ª temporada

    A comédia dramática de Justin Simien começa a levar a vida menos a sério, mas ainda sabe chutar a porta, quando quer.

    Nota: 4,0/ 5,0

    Se você procurar a expressão "subestimado" no dicionário, seria justo ver o trailer de Cara Gente Branca em sua definição. Mesmo sem ter o apelo popular de outros fenômenos Netflix, trata-se de uma série amplamente elogiada pela crítica e com um grupo leal de fãs. Percebendo o sucesso do mundo que criou, o roteirista/diretor Justin Simien decidiu se arriscar na terceira temporada.

    Normalmente, a adaptação do filme homônimo tende a dividir sua narrativa através das jornadas individuais dos protagonistas. Só que, dessa vez, a história se expande além dos problemas da Armstrong-Parker House para explorar mais facetas de tal universo fictício. Para isso, ele começa a trama pelas beiradas, aprofundando personagens coadjuvantes que roubam a cena, numa forma de orientar a história por diferentes lados. Enquanto isso, quase todos os integrantes do elenco principal caminham em passos incertos, enfrentando crises ou novos desafios, se juntando a narrativa aos poucos.

    Assim, é possível que alguns enxerguem tal fase como algo mais superficial, quando, na realidade, simplesmente amplia a visão para mostrar uma diversidade de figuras que nos entretêm. Simien sabe que construiu um mundo interessante e está pronto para dissecá-lo por novos ângulos. E não há nada de errado nisso. Se você tem todo um jardim, por que ficaria observando somente as rosas? Da mesma forma que uma real obra politizada sabe que não pode observar as questões diárias por apenas uma visão.

    Ainda de luto, o público conhece uma Sam (Logan Browning) menos motivada, com dúvidas sobre o que fazer em seu documentário. Lionel (DeRon Horton) larga o jornalismo para investir num projeto misterioso; Joelle (Ashley Blaine Featherson) assume o 'Cara Gente Branca', mas seu relacionamento com Reggie (Marque Richardson) pena com a idolatria do jovem por um novo professor; Coco (Antoinette Robertson) arrisca a saúde por uma grande oportunidade, enquanto Troy (Brandon P. Bell) busca reinvenção com a satírica revista Pastiche.

    Se parece que tais arcos são mais fracos do que aqueles apresentados em temporadas anteriores (e eles realmente são), ainda conseguem proporcionar novas facetas de rostos já conhecidos. É trazer algo inventivo para uma estável fórmula que já funciona, tentando extrair ainda mais. Afinal, história para contar não falta nesse grupo de personagens. Nesse clima, quem ganha muito destaque é Brooke (Courtney Sauls), a obsessiva jornalista ex-colega de Lionel que busca sua grande história; ou Al (Jemar Michael) que parece ser o único a ainda se importar com as lutas da Armstron-Parker House, enquanto ainda tem seus próprios conflitos de interesse; ou Kelsey (Nia Jervier) e seu desenvolvimento emocional além do estereótipo cômico.

    Sem falar em novatos como o hilário D'Unte (Griffin Matthews) — que passa a orientar Lionel no mundo LGBTQ — e a excêntrica Abgail (Sheridan Pierce), a única mulher na redação do Pastiche. Logo, até personagens menos interessantes como Gabe (John Patrick Amedori) ganham seus próprios dilemas. O trunfo de Simien é saber extrair algo criativo até dessas situações, ainda investindo em diálogos afiados, referências pop, metalinguagem e pesadas críticas jogadas de forma tão natural. É surpreendente perceber como ele foge de investir somente numa teoria da conspiração com o mistério da Ordem que o próprio construiu, pois a ideia aqui é explorar a rotina conjunta da faculdade, de maneira verdadeira e pouco apresentada nas telinhas até então.

    O interessante é que isso dá oportunidade de apresentar visões de mundo diferentes daquele idealismo dos protagonistas nos arcos principais das temporadas passadas. Claro que nem tudo é perfeito. Participações de Giancarlo EspositoLaverne CoxYvette Nicole Brown são pouco aproveitadas, assim como os talentos dramáticos de Browling e Antoinette, por exemplo. Ao mesmo tempo, as auto-referências se tornam exageradas em determinado momento, enquanto alguns arcos se perdem no caminho, como "a validação" forçada de projetos no estilo Tyler Perry, Felizmente, seu roteiro permanece inteligente a ponto de perder sua qualidade total. Só muda de ritmo, engrenando mesmo a partir do quinto episódio.

    Pincelando opiniões sobre racismo, sexismo e falta de apoio aos estudantes, as críticas sérias de Dear White People (no original) voltam a ganhar protagonismo mesmo apenas na reta final, a partir de uma delicada situação. Novamente, Simien faz uma escolha inesperada para eleger quais serão os personagens envolvidos em tal tópico, pois tem a chance de falar como certos grupos raciais têm problemas para aceitar os defeitos de ídolos — como visto recentemente nos debates ao redor dos supostos crimes de R. Kelly e Michael Jackson, por exemplo. É ousado questionar se o apoio que determinada pessoa dá a sua comunidade é mais importante que a dor de outras vítimas. Não é confortável perguntar isso. Mas a série encontra uma forma sincera de falar no assunto, culminando numa impecável sátira de si mesma no episódio final.

    Tudo isso é possível graças a um elenco talentoso (com destaques para as performances de Sauls e Mathews neste ano), enquanto a cereja do bolo fica justamente na fotografia cada vez mais ambiciosa do projeto, onde seis dos dez recentes episódios são dirigidos por mulheres (cinco delas vindas de minorias) — Cheryl Dunye, Kimberly Peirce, Marta Cunningham, Tiffany JohnsonSam Bailey e Salli Richardson-Whitfield. Levando a vida menos a sério, mas ainda chutando a porta quando necessário, Cara Gente Branca segue como uma das melhores coisas presentes da TV atual.

    E você deveria estar vendo.

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