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    Gabriel e a Montanha
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Gabriel e a Montanha

    Caindo na real

    por Taiani Mendes

    Rapaz rico e inteligente deixa sua casa, família e cidade para se aventurar sozinho por territórios distantes com pouca bagagem e muito interesse nas pessoas que encontra pelo caminho. Nunca mais retorna. Apesar das semelhanças, Gabriel e a Montanha não é o Na Natureza Selvagem brasileiro. Por razões distintas, é tão bom quanto. Amigo de Gabriel Buchmann desde os tempos de escola, o diretor Fellipe Barbosa (Casa Grande) dramatiza os últimos passos do brasileiro com carinho e frescor cinematográfico. Sobe com amor.

    Economista carioca, Gabriel Buchmann foi encontrado morto no Monte Mulanje, no Malawi, aos 28 anos. Era 2009. Barbosa abre o longa-metragem com um belíssimo plano-sequência finalizado no descobrimento por acaso do corpo, procurado durante semanas. Há a beleza do local, há a surpresa e indecisão dos trabalhadores, há a força da música, não há dor ou sofrimento. Encolhido sob uma grande pedra, Gabriel (João Pedro Zappa) parece abraçado pela natureza. Como ele foi acabar ali? O filme responde com base em e-mails e mensagens enviadas, memórias de pessoas que cruzaram seu caminho e fotografias, recriando seus passos em sandália de borracha de pneu nos últimos 70 dias de vida.

    Ancorada em atuação muito carismática, cheia de energia e sorridente de Zappa, a primeira parte é dedicada a fazer o espectador se encantar pelo mzungu (homem branco) simples que dorme no chão da pobre família negra, canta (e vive) "Nos Bailes da Vida", faz piada com as diferenças entre brasileiros e massais, zoa o ex-jogador Ronaldo e troca hotéis pelas camas de pessoas que acabou de conhecer. Qualquer pessoa com o mínimo de reflexão sobre a questão racial, no entanto, provavelmente se sentirá incomodada com as cenas. Um homem que está na África “pesquisando a pobreza” (descrição que já é bastante problemática) e tem como uma das características mais pontuadas ser comilão. Ele diz querer discutir redistribuição de renda ao mesmo tempo em que, como Um Príncipe em Nova York, esconde sua excelente situação financeira para evitar ser explorado. Vangloria-se de dar 80% do dinheiro para quem o ajuda como se não tivesse fazendo mais do que sua obrigação após usufruir de hospedagem, alimentação e serviços equivalentes ao de um guia turístico. Se acha o mzungu mais diferente do pedaço (“sou brasileiro, não homem branco!”) e não tem pudores de afirmar feliz se sentir “penetrando na alma da África”. Apavorante.

    A máscara do “bom branco amigo” de Gabriel cai na forma como ele trata o guia John Goodluck, encarregado de levá-lo ao Kilimanjaro, e é destruída com a transformadora entrada em cena de Cris (Caroline Abras), a namorada. Na parte do trajeto compartilhada com ela o filme muda e é então que conhecemos Buchmann além da superfície agitada da simpatia e do afeto, desnudado como tremendamente conservador, egoísta, mesquinho e arrogante. O pobrólogo da turma de reacinhas da PUC. Sua intensa jornada é uma fuga e não o empreendimento estudioso por ele pregado, Cris dispara. E cai o castelinho de areia, o que não significa que ele se torne automaticamente odiável. As contradições nada surpreendentes o deixam mais honesto, assim como o humanizam os altos e baixos do relacionamento amoroso representado com bastante química pelos atores.

    Brevemente afastado de sua essência de viajante "muito roots" quando em companhia da namorada, Gabriel volta ao contato mais próximo com a população local quando ela vai embora e sua conexão se dá de maneira bem distinta do trecho inicial do filme, já num outro tom, como se o próprio diretor tivesse mudado de consciência ao longo do percurso. Acompanhado dos atores e equipe reduzida, Fellipe realmente refez a trajetória do falecido amigo e a sensação da viagem como um constante aprendizado, uma soma da sucessão de eventos, é transmitida pelas imagens. Seria fácil a fotografia se distrair com os incríveis cenários naturais nunca registrados pelo cinema brasileiro, mas em momento algum o foco em Gabriel é perdido e mesmo as imponentes montanhas são apenas caminhos para o protagonista correr, se superar e tirar foto no topo. Além da intimidade do realizador com o personagem principal e as locações, Gabriel e a Montanha tem como diferencial a participação de pessoas que conheceram o economista na África encenando os momentos que passaram com ele e narrando o que sentiram ao saber de sua morte. Alguns estão completamente confortáveis diante da câmera, outros nem tanto e o resultado em ambos os casos é incrível, melhor ainda pelo uso da estratégia de documentário só ser confirmado nos créditos finais.

    Não há sentido espiritual, ideológico ou acadêmico no interesse de Gabriel pelas montanhas. Ele apenas quer vencer o desafio, cortar um ponto turístico da lista obrigatoriamente no menor tempo possível. Assim como se acha melhor do que a namorada – por ser fiel –, do que os companheiros de faculdade – por pensar a economia socialmente – e dos outros turistas – por não se deixar enganar – , ele se vê melhor do que os guias não ter preguiça e ignora por completo a força da natureza. Perde a sensação de superioridade em posição irreversível, cercada de misticismo na sensível interpretação do diretor. Fellipe Barbosa, amigo apaixonado que é, cria significado profundo para jornada de Gabriel e dá serenidade ao seu precoce adeus, como que passando a limpo em caligrafia impecável um diário incompleto.

    Filme visto no 19º Festival do Rio, em outubro de 2017.

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