Atenção! Contém SPOILERS do episódio 7 da 1ª temporada de Watchmen, “An Almost Religious Awe”
Aquele com o elefante no meio da sala.
No primeiro trailer de Watchmen, quando sabíamos ainda menos sobre a série do que sabemos hoje, a prévia ao som de “Life on Mars?” e as muitas referências ao Doutor Manhattan davam a entender que eventualmente veríamos, sim, o homem cósmico outrora conhecido como Jon Osterman eventualmente fazendo uma aparição na produção de Damon Lindelof. Até aqui é claro que algumas pistas foram sendo deixadas no caminho para que o fatídico episódio 7, “An Almost Religious Awe”, revelasse que o Doutor Manhattan há muito tempo abandonou Marte e voltou para a Terra, onde vive disfarçado como um ser humano comum. Mais especificamente, como o marido de Angela (Regina King), Cal Abar (Yahya Abdul-Mateen II).
Mas faltando dois episódios para que a temporada de Watchmen chegue ao fim, a sétima hora dessa extensão da história criada por Alan Moore e Dave Gibbons trata de abordar a revelação sobre o Doutor Manhattan não como uma grande reviravolta, mas como um dos momentos finais de uma construção que vem há muito sendo desenhada. Do início ao fim desses quase 60 minutos, conhecemos a história de Angela e as suas relações familiares enfraquecidas e traumatizantes; de sua obsessão infantil com a Sister Night — que permanece até a vida adulta e agora entendemos o porquê — à forma como o momento de maior transformação em sua infância se cruza com o eterno fascínio popular por Doutor Manhattan, tudo é construído para que culmine em uma empolgante peça deste jogo. O fato de o ser mais poderoso deste universo estar escondido à vista de todos, sem memória de quem realmente é e escanteado pela maior parte da temporada não é algo sem propósito; é uma tática que tem algo a dizer a respeito de uma sensação de abandono, de um mundo sem deuses e sem uma regência que esteja no controle de tudo. A população, afinal, está à própria mercê, e de nada adiantava tantas orações enviadas a Marte na esperança de que Manhattan voltasse para solucionar todos os problemas da Terra.
Este flerte com religião, niilismo e ateísmo na obra de Lindelof ganha um toque especial em Watchmen que está distante do sentimentalismo enraizado em Lost e The Leftovers, por exemplo, mas ainda continua preso com fortes raízes aos pensamentos filosóficos de uma pós-modernidade transgressora, para o bem ou para o mal. O questionamento transcende a existência ou não-existência de uma orquestra e de uma regência universal, e prefere analisar como as pessoas percebem as múltiplas visões e moldam as muitas vertentes da filosofia para suas próprias rotinas e ideologias — como acontece nos movimentos contra o racismo, nas mais recentes ondas do feminismo e dos movimentos pró-LGBTQ+.
Neste sentido, é curioso tentar imaginar o que seria de uma conversa entre o John Locke de Terry O'Quinn, o Reverendo Matt Jamison (Christopher Eccleston) e a cética Angela Abar, por exemplo. Tratam-se de três formas diametralmente opostas de enxergar o controle ou a falta de controle dos acontecimentos em um momento em que a revolução e o progresso não importam; é a busca da resposta para o quanto podemos ou não podemos interferir em uma suposta ordem natural das coisas, ainda que se saiba que não existe exatamente uma resposta. A permanência deste estudo passando pelas grandes séries de Lindelof, de uma certa forma, compreende o entendimento do que ele deseja com Watchmen.
De uma forma mais objetiva, o sétimo episódio está interessado em nos mostrar como Angela veio a se tornar quem é, através de um histórico de abandono e solidão que ela é forçada a confrontar durante o tratamento após a overdose de Nostalgia. Ela está na sede da Farmacêutica Trieu, sendo cuidada pela própria personagem de Hong Chau, enquanto revive algumas das memórias de sua infância, que mostram ao público as formas como a história dela é parecida com a história de Will Reeves (Louis Gossett Jr.). Ambos perdem os pais muito cedo e se encantam com o trabalho de policiais justamente para honrarem as próprias famílias e manterem-se perto de suas origens.
Como não poderia ser diferente, a Watchmen de Damon Lindelof vai aos poucos se revelando muito mais enraizada na Watchmen de Moore e Gibbons do que muitos fãs previam inicialmente. Este mesmo histórico de abordagens e inspirações familiares geracionais estava presente na transição dos Homens-Minuto para a segunda leva de mascarados — pelo menos, com a história de Laurie (Jean Smart) se tornando a Espectral II após sua mãe, Sally Jupiter. Agora, estamos diante da transição e da história da família do primeiro dos vigilantes, o Justiça Encapuzada, e a conexão lógica e temática feita aqui é novamente uma alfinetada na América de ultra-direita, após o impactante episódio 6, “This Extraordinary Being”.
Afinal de contas, se temos de um lado uma organização racista e com tendências ao fascismo, como a Sétima Kavalaria, do outro lado o que temos é a neta do Justiça Encapuzada, uma empoderada Laurie Blake (mais distante do que nunca do clichê hiperssexualizado de seu uniforme e de seus relacionamentos com o Manhattan ou com o Coruja) e o próprio Doutor Manhattan. Um Doutor Manhattan, aliás, que contribui para um mergulho ainda mais fundo na principal área de interesse desta versão da história: Deus é um cara negro tentando levar uma vida pacata com sua esposa e os filhos no estado de Oklahoma.
Agora que Angela está de volta ao presente, o episódio também consegue ficar mais tempo na história corrente e menos tempo nos flashbacks e nas histórias de origem. É claro, passamos a enxergar aqui com mais clareza o quanto os vigilantes são de fato influenciados pelos traumas de infância, do Justiça Encapuzada à Espectral à Sister Night. Também fica mais claro, enfim, o plano que está em curso desde o início da temporada. Sendo Joe Keene Jr. o grande vilão e líder da 7K, o seu plano, levando em conta o histórico de controle mental do programa Ciclope, é reprisar o experimento que transformou Joe Osterman no deus azul.
E este, no sentido literal e metafórico, é o elefante no meio da sala. Lembra-se do termo memória de elefante? Isso explica por que é o animal, e não Will, que está recebendo a Nostalgia sendo extraída de Angela no laboratório de Trieu. E se alguém ainda precisava de mais uma dica para entender que Watchmen é um grande manifesto antirracista, o Senador Keene dizendo que “é muito difícil ser um homem branco nos Estados Unidos hoje” é o que faltava para que não restassem dúvidas.
Outras reflexões
- Havia alguns indícios de que Cal era o Doutor Manhattan, talvez o maior deles (literalmente) seja o dildo gigante de Laurie. Segundo explica o Peteypedia, o objeto foi criado por Dan Dreiberg, que deu de presente à ex-namorada após descobrir que ela não tinha superado o gigante azul. O nome? Excalibur. Ex. Cal. Abar.
- Voltamos à lua de Júpiter em que Adrian Veidt (Jeremy Irons) está preso, Europa. Dessa vez, ele enfrenta o julgamento por seus muitos pecados e crimes, e seu único argumento a favor de si mesmo é um peido barulhento que faria inveja à Bad Janet e… uma invasão de porcos? Ainda não estamos entendendo muito bem o que está acontecendo nesta esquina da história, mas certamente Ozymandias não se esforçar mais por sua própria defesa levanta suspeitas de que, mais uma vez, ele está mais por dentro do que nunca de todas as peças deste quebra-cabeças.
- Por que Laurie continuou sentada esperando o controle remoto de Jane Crawford (Frances Fisher) funcionar? Ela certamente está longe de ser inocente a este ponto, o que sugere que foi tudo premeditado para que ela se infiltrasse no cérebro da Sétima Kavalaria. E ela resumindo que “brancos de máscaras são heróis, e negros de máscara são uma ameaça” era a justifica necessária.