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    O Mecanismo: Crítica da 2ª temporada

    Ou quando a política brasileira superou House of Cards.

    NOTA: 3,5 / 5,0

    Há poucos anos, quando Kevin Spacey ainda não era persona non grata devido às várias acusações de assédio, era comum ver nas redes sociais que a imaginação dos roteiristas de House of Cards não conseguia duelar com as tramoias e surpresas proporcionadas pela política brasileira - um comentário gaiato com um fundo trágico, diga-se de passagem. O Mecanismo é quase uma inversão de tal brincadeira: uma série política que explora fatos recentes como dramaturgia, mesclando ficção e muito do que assustou (e polarizou) o Brasil nos últimos anos. Não por acaso, gerou tanta polêmica quanto estreou na Netflix.

    Nesta segunda temporada, já no primeiro episódio o showrunner José Padilha manda seu recado através da (ótima) narração em off de Selton Mello: "O Brasil é muito estranho. Se eu digo que um político de esquerda é bandido, eu sou fascista. Se eu aponto um larápio, safado da direita, sou chamado de esquerda caviar. Ideologia é um troço que cega." Com base em tal mensagem, aos poucos a série apresenta um imenso panorama do cenário político nacional com base nas investigações da Operação Lava-Jato, mais exatamente no período que compreende a prisão de alguns dos principais empreiteiros do país até o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef - aqui, renomeada como Janete Ruscov (Sura Berditchevsky). Só que, mais do que recontar fatos já conhecidos, o mérito de tal proposta está na clareza com a qual Padilha e toda sua equipe apresentam questões complexas e de grande abrangência, esmiuçadas a partir de muito cinismo sem deixar, também, de emitir opinião. Algo bem parecido com o que o diretor já havia feito em seu maior sucesso: Tropa de Elite.

    Seja na forma ou na ambientação, há muito de Tropa de Elite em O Mecanismo. Além da já citada narração em off, em ambos é apresentada uma realidade degradada pela corrupção, onde os personagens muitas vezes desviam das leis para alcançar seus objetivos. É interessante notar que, mesmo nos policiais da Lava-Jato, há uma série de falhas morais espalhadas, do não-pagamento do IPVA à aplicação de um grampo ilegal, que servem também de prenúncio ao ápice de tal proposta, quando o juiz Paulo Rigo (Otto Jr.) divulga a gravação ilegal de um diálogo entre Janete e o ex-presidente Gino (Arthur Kohl, ótimo). Mais que julgá-los, O Mecanismo deseja explorar as facetas dúbias do ser humano a partir de suas motivações, de forma a ressaltar que, em uma sociedade tão viciada no jeitinho como a brasileira, não seguir as leis pode ser tolerável em determinados momentos - dentro da realidade de tais personagens, é bom ressaltar.

    É neste sentido que há muito de Capitão Nascimento no Marco Ruffo interpretado por Selton Mello. Ambos são heróis tortos solitários, que carregam a responsabilidade de mudar o mundo à sua volta, mesmo que por vezes precisem pesar a mão. Se o personagem de Wagner Moura em certos momentos beirava o fascismo, especialmente no primeiro filme, o de Selton não pensa duas vezes antes de propôr maus tratos a prisioneiros - nada de tortura, é bom ressaltar! -, de forma a pressioná-los a assinar uma delação premiada - inclusive, em vários momentos ele até mesmo se orgulha de ter ensinado tais táticas à sua pupila, Verena (Caroline Abras), que as aplica dentro da Polícia Federal. Assim como Nascimento, Ruffo pouco a pouco aprende a real dimensão de sua investigação, ganhando consciência política acerca das consequências de seus atos sem jamais perder o foco em seu papel dentro de toda esta engrenagem: "ver é sempre melhor que não ver". A corrupção precisa ser escancarada, por mais que esteja incrustada no modus operandi brasileiro.

    Revelá-la é o grande objetivo de O Mecanismo, e para tanto a série assume sem medo o tom de thriller policial. Inicialmente sem se ater tanto à política de Brasília, graças à perseguição do 13º empreiteiro, Ricardo Bretch (Emilio Orciollo Netto, mais uma vez caprichando na arte de interpretar um personagem odioso), mas inevitavelmente mergulhando fundo neste contexto, especialmente em seus episódios finais. Neste sentido, é claro, a série atira para todos os lados mas também toma partido, defendendo os ideais de democracia e criticando o viés político das investigações. A fotografia de Lula Carvalho e a edição ágil, impulsionada por uma boa trilha sonora, também ajudam a série a ter um ritmo sempre envolvente.

    Entretanto, por mais que se dedique a recontar fatos marcantes recentes do país, O Mecanismo é também uma série que busca desenvolver seus personagens ficcionais, por vezes até mesmo os priorizando em detrimento ao que realmente aconteceu. O maior exemplo de tal proposta é o desfecho do terceiro episódio, que abre mão de um momento catártico (e real) da investigação em nome de um viés pessoal de Verena. No decorrer de toda a série, é possível perceber o caminhar do quarteto principal, formado por Ruffo, Verena, Vander (Jonathan Haagensen) e Guilhome (Osvaldo Mil, muito bem), ao mesmo tempo em que o norte investigativo jamais é perdido.

    Repleto de diálogos extremamente cínicos, o roteiro de Elena Soárez ora brilha intensamente - a chegada de Ruffo ao Paraguai, especialmente - ora comete alguns deslizes, por facilitadores mal inseridos na narrativa - a justificativa das pedaladas fiscais, por exemplo. Há também uma certa esquematização da temporada, que setoriza determinadas situações em episódios específicos. Tal proposta fica mais nítida especialmente nos dois últimos episódios, graças ao tom didático empregado por Ruffo para explicar o histórico da corrupção no Brasil, mesmo que seja à custo da ausência de dinâmica do personagem com a própria filha, mera figurante em todas as sequências em que marca presença. O mesmo vale para o esforço intencional que Ruffo e Verena ganhem, cada, um arquinimigo a ser combatido.

    Bem desenvolvida, a segunda temporada de O Mecanismo ganha também pontos pelo carisma inegável de Selton Mello e pelo bom trabalho do elenco como um todo. Se há o mérito de tornar palatáveis questões tão complexas, não se pode também ignorar que, de certa forma, o noticiário do dia a dia e os próprios fatos acabam ajudando bastante a priorizar o que deve ser mostrado. Em seu esforço em esmiuçar as maquinações de bastidores, merece também elogios a forma honrosa como a série apresenta a condução coercitiva do ex-presidente Gino, muito distante da versão raivosa apresentada no panfletário Polícia Federal - A Lei é para Todos.

    Pode até ser que O Mecanismo ganhe uma terceira temporada, afinal de contas escândalo político é o que não falta neste país e a Lava-Jato segue em frente, mas o desfecho desta temporada passa a sensação de fim de ciclo, não só para estes personagens mas para a proposta da série como um todo, mesclando denúncia e crítica sócio-política.

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