Nota: 4,5 / 5,0
Atenção! Contém SPOILERS do final de Sharp Objects.
Quando a adaptação de Sharp Objects foi concebida, tratava-se de um filme. Alguns anos se passaram até que a Blumhouse Productions oficializasse a transição para as telinhas, mais tarde explicada por Jason Blum:
“Estávamos tentando fazer um filme e caía sempre no mesmo problema: mesmo sendo uma história de gênero, havia muito drama e muito trabalho de personagem. Então Marti [Noxon] sugeriu fazermos uma série, e levou um tempo até que conseguíssemos acertar tudo, mas no fim conseguimos a casa certa.”
Transformar Sharp Objects em uma minissérie de oito horas para a HBO ao invés de em um filme de no máximo duas horas e meia estabelece que há tempo — até de sobra, dependendo da sua disposição — para que aquele universo seja ambientado. Para uma obra que depende de forma crucial do entendimento da cidade em que se passa — Wind Gap, Missouri —, não é tempo perdido.
Mais do que uma história de romance policial que é conduzida na estrutura clássica de: um assassinato, uma investigação acompanhada através dos olhos dos policiais ou investigadores e personagens intrigantes com segredos que podem ou não levar à resolução do caso, Sharp Objects é um camaleão. Disfarçada de uma história de gênero está a história de como o sexismo afeta de formas diferentes três gerações de mulheres.
Para Adora Crellin (Patricia Clarkson), lidar com o sexismo significa atender às expectativas impostas pela sociedade para uma mulher. Significa manter as aparências e ser exatamente o que se espera de uma matriarca de uma família rica e de referência naquela sociedade. É por isso que existe a preocupação já naturalizada sob sua pele de ser a mãe perfeita — que rejeita qualquer imperfeição, qualquer detalhe que saia de sua teia e da maneira como ela arquiteta qualquer ação e reação. Que, por isso, rejeita uma filha.
Para Camille Preaker (Amy Adams), lidar com o sexismo significa ir contra tudo o que se espera de uma “boa moça”. Significa ser a epítome da contravenção ao absorver para si tudo que pode ser visto como ruim. Em um certo trecho do livro, ela acusa Richard Willis (Chris Messina) de ser machista, um “liberal de esquerda praticando discriminação sexual sob o disfarce de proteger as mulheres da discriminação sexual”, algo que o investigador alega não estar fazendo de forma consciente. Camille lida com o sexismo escondendo dentro de si tudo o que considera desagradável, chocante — a obsessão juvenil pelo sexo, a automutilação, o vício em álcool —, como um repelente natural contra qualquer coisa que pudesse a fazer se sentir confortável consigo mesma.
Por fim, Amma Crellin (Eliza Scanlen) lida com o sexismo assumindo o controle da situação mas fingindo vulnerabilidade. Uma característica, aliás, que a personagem apresenta desde o início e que acaba sendo o ponto-chave para decifrá-la no final. A ideia de Amma, que ela explica claramente no episódio 6, “Cherry”, é a de entregar o controle da situação aos homens até um certo ponto, por saber exatamente até onde quer ir. Ela está no comando sem que ninguém saiba que é ela. Precisa de outra dica?
Através dos olhares destas três mulheres, Sharp Objects utiliza o mistério dos assassinatos de Ann Nash (Kaegan Baron) e Natalie Keene (Jessica Treska) para tratar de um tema muito mais pessoal e introspectivo. Este arco principal existe primordialmente para catapultar para o centro da história os traumas de Camille e tantas vulnerabilidades das três protagonistas. E isso está escondido em pequenos detalhes que jogam com as expectativas do leitor para este tipo de narrativa.
Repetidas vezes durante os episódios, Vickery (Matt Craven) e Willis reafirmam que o assassino só pode ser um homem, devido à força requerida para arrancar os dentes das vítimas. Usualmente em romances policiais — ou em qualquer história de investigação —, o roteiro utiliza a palavra de autoridade dos investigadores para dar ao público um fato que não será contestado. Aqui, por exemplo, a insistência da Polícia no fato de o assassino ser um homem joga contra os instintos da protagonista, que suspeita de uma mulher apesar da ausência de qualquer indício. O público, portanto, tem a livre escolha de em quem acreditar a princípio — mas em quem você vai depositar a sua confiança neste primeiro momento tem algo a dizer sobre você.
Mais do que transmitir uma sensação de acalento por se tratar de uma cidade pequena, a própria ambientação é quase uma personagem em si. Wind Gap traz duas sensações: a primeira é a da hospitalidade do sul dos Estados Unidos com muita comida e pessoas simpáticas. A segunda é a própria farsa estabelecida por este falso conforto, que é transmitida quando vimos uma cidade sempre quente e úmida, com um zumbido eterno, pronta para expulsar dali qualquer um que tente se sentir bem.
Produzida por Marti Noxon (UnREAL, Dietland), com roteiro de Noxon e Gillian Flynn (autora da obra original), Sharp Objects não seria metade do que é se não fosse pelo trabalho primoroso de Jean-Marc Vallée. O cineasta, que já havia trabalhado em Big Little Lies (ou seja, a outra minissérie de sucesso da HBO baseada em um livro protagonizado por mulheres), assume a direção dos oito episódios e também a montagem. Aqui, esta edição é extremamente funcional à história, até mais do que na sua série anterior — o que não é pouca coisa. As inserções de flashbacks da infância de Camille (Sophia Lillis) com sua irmã falecida Marian (Lulu Wilson) são feitas de forma tão natural que muitas vezes a transição é quase imperceptível.
Analisando a obra de Vallée, não é de hoje que o trabalho de montagem é o ponto que o leva a outro patamar. Mas em Objetos Cortantes, o seu maior desafio era traduzir em imagens os longos momentos de introspecção de Camille, todas as passagens do livro que recontam as lembranças da protagonista em seus momentos de solidão.
Em Big Little Lies, Vallée utilizou a praia e o quebrar das ondas para trazer de volta as lembranças de Jane (Shailene Woodley) que costuravam a história e os seus traumas. Em Sharp Objects, é a própria residência dos Crellin que serve como cenário para evocar memórias. Já que a própria morte de Marian é uma questão que a série traz, fazer os flashbacks funcionarem organicamente é essencial. O realizador muitas vezes filmava com Adams e Lillis ao mesmo tempo para que as transições funcionassem, e é um trabalho compensador observar que as aparições da versão mais nova da jornalista nunca acontecem em vão. Elas sempre completam uma informação, reafirmam a sensação de mal-estar eterno ou servem para mostrar exatamente como — ou quando — ela começou a ter pensamentos negativos a respeito de si mesma. Eles estavam sempre ali?
A excelência de Vallée é coroada com o trabalho primoroso do trio principal. Adams, Clarkson e Scanlen não deixam a desejar em absolutamente nada. A mais nova, aliás, é uma grande revelação pois chega a ser assustadora a intensidade dramática e a facilidade com que transita entre os momentos de euforia e os momentos de calma de Amma.
No que é provavelmente um dos trabalhos mais impactantes de sua carreira, Amy Adams se entrega totalmente a Camille. Trata-se de uma personagem densa e repleta de camadas que não devem ser visíveis em um primeiro olhar — e de fato não são. Em um primeiro momento, Camille passa a impressão de ser uma pessoa perfeitamente ordinária. Aos olhos de terceiros, nada fora do comum transparece, e há um trabalho de câmera preciso que ajuda a compor este olhar dúbio sobre a personagem. Quando a câmera é subjetiva, podemos ver por exemplo alguns detalhes de suas cicatrizes. Quando a câmera passa a encará-la de um olhar externo, nada é visível. E tais nuances são perceptíveis não apenas nas escolhas técnicas de Noxon e Vallée, mas na postura corporal da atriz (que também é produtora), em grandes cenas em que Camille se expõe dolorosamente. Se Sharp Objects não é a prova de que Amy Adams é uma força da natureza, então nada mais é.
Mais uma vez, a HBO mostra que a execução bem pensada é a melhor estratégia para se construir um hit. É muito difícil imaginar um cenário em que esta série não domine as categorias de limitadas no Emmy Awards 2019, pelo ótimo trabalho do elenco, do diretor e da produção executiva. Se a longa apresentação de Wind Gap incomoda uns por ser um desenvolvimento não lento, mas extremamente sutil, é um presente por esconder nos detalhes a ironia e a opressão veladas. A cidade é tão importante para Objetos Cortantes quanto é Twin Peaks para Twin Peaks — um cenário de prepotência disfarçado sob um véu de boas maneiras, um cenário de terror que carrega em si uma perturbação latente. É fascinante e ao mesmo tempo repugnante, um jogo de atração e repulsão quase sexual.
Em seu arco final, Sharp Objects acaba deixando sem respostas algumas questões em que o livro entra mais a fundo, não sobre a real culpa de Adora, mas sobre o seu histórico com a mãe e até mesmo o que acontece com Amma depois que Camille descobre a verdade. É uma escolha estranha e divisiva — que pode até dar margem a uma hipotética e desnecessária renovação para segunda temporada, caso as palavras de Flynn sejam contrariadas —, porque simplesmente solta o espectador no ar e vai embora. Corta!
Mesmo assim, é um final amplamente satisfatório. O episódio opta por não desenvolver uma possível redenção de Amma, nem explicar os seus motivos para cometer os assassinatos — é um final cortante, como diz o próprio nome, como foi toda a montagem que não te dá tempo para pensar por mais de três segundos depois de Adora dizer a Camille que nunca a amou. Sharp Objects sai de cena como a apresentação fria e contundente do cenário de devastação mais atraente possível.
Só não conte para a mamãe.