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    Crítica da primeira temporada de 3%

    Primeira série original brasileira da Netflix é mais bem intencionada do que bem realizada.

    O cinema nacional vive um bom momento, com muitos prêmios e boa visibilidade mundo afora. Porém, parte relevante da crítica brasileira questiona os valores artísticos de tais obras. Consagrados mundialmente, Que Horas Ela Volta? e Aquarius, por exemplo, estariam tão preocupados em veicular uma mensagem, retratar agruras sociais, que o fariam em detrimento de articular a linguagem audiovisual com mais habilidade. Nas palavras de Wellington Sari para a Revista Interlúdio, esse seria um cinema-Enem — cheio de questões.

    De fato, os longas-metragens de Anna Muylaert (tão brusco na articulação de sua trama e crítica social, e sem propor mais que isso), Kleber Mendonça Filho — por cenas pontuais, apesar de conter tanta cinefilia, grandes momentos de dramaturgia e ser muito bom — e tantos outros do cinema contemporâneo podem ser inclusos em tal definição. E, mais ainda, é o caso de 3%, a primeira série brasileira produzida e distribuída internacionalmente pela Netflix.

    Aos 20 anos, os seres humanos têm a chance única de participar de uma seleção conhecida como Processo. A dificílima disputa premia apenas 3% dos concorrentes com uma vaga à sociedade perfeita de Maralto, provida de tudo para todos. O resto da população vive no Continente, na miséria, refém da pequena parcela da população mantenedora desse cenário de forte segregação social. O mundo digno é exclusivo às pessoas mais merecedoras.

    A premissa de 3% é, portanto, muito real, e muito atual. A meritocracia repetida como mantra pelo líder do Processo, Ezequiel (João Miguel), é a questão principal da série — e explorada com uma dualidade interessante. Na maior parte do tempo, os concorrentes são mesmo avaliados e analisados justamente. O mérito não é o problema. Desumana é a existência de um estado de coisas tão desigual, bem como a seleção de quem poderá viver dignamente ou não. Mostrar que a elite que discursa sobre a justiça do Processo é a mesma que promove o injusto status quo da sociedade é um recado importante.

    Nesse cenário, 3% consegue ser duplamente relevante. Pelo discurso (a frase "Vamos cuidar de vocês" dialoga assustadoramente com a nossa situação política), e também por conseguir integrar um elenco tão diversificado sem deturpar sua mensagem. Assim, vemos negros em posições importantes, sem estereótipos. Um dos protagonistas, Fernando (Michel Gomes, o melhor do elenco) é um cadeirante retratado como a pessoa normal e inteligente que é, com direito a vida sexual tão ativa quanto sua voz. Da mesma forma, as principais personagens femininas — Michelle (Bianca Comparato), Joana (Vaneza Oliveira), Aline (Viviane Porto), Nair (Zezé Motta) — passam facilmente no Teste de Bechdel.

    O problema é como isso tudo se articula e se transforma numa produção audiovisual.

    Os primeiros episódios parecem mesmo uma versão paralela de Jogos Vorazes. Piorada, com ecos do falso reality de Supermax (partilhando com a prima de televisão nacional o pioneirismo, os diálogos expositivos, a dramaturgia oscilante). A sociedade totalitária nunca soa suficientemente perigosa, urgente, pois a assepsia das instalações do Processo (onde a composição de direção de arte e figurino funciona muito bem) também se manifesta nas favelas e nas vestimentas em frangalhos, muito artificiais. Pelo apartheidElysium é outra lembrança recente que vem à mente. Agora repare: todos filmes e séries de qualidade discutível.

    O experiente diretor geral César Charlone incorre num erro cinematográfico básico: dizer mais que mostrar. Assim, ao final, a impressão é de que ser um dos 3% é muito mais fácil do que promete ser na premissa, com alguns testes finais bem bobos. Isso se aplica à decepcionante atuação de João Miguel. Ezequiel é tão monocórdio que não convence nem como um vilão introspectivo, nem quando fala pra fora (a mixagem falha miseravelmente em algumas passagens, com trilha se sobrepondo às vozes dos personagens, que ficam inaudíveis), berrando falsamente ao interrogar os candidatos. Até quando demonstra compaixão, o desenvolvimento de seu personagem é insosso, e sua complexidade fracassa.

    Assim, o clímax acaba sendo o meio da temporada — mais precisamente, o quinto episódio, de um flashback sobre a história de amor à la Black Mirror de Ezequiel e Júlia (Mel Fronckowiak). 3% também acerta na fotografia, com sua iluminação intensa, o efeito bonito de flares, luzes estourando pontualmente. Nos enquadramentos tortos, em ângulos enviesados, a imagem realça a visão viciada dos que habitam o Processo e aquela realidade bizarra, ao mesmo tempo futurista (tecnologicamente) e atrasada, em termos éticos. Aqui, sim, há uma boa combinação de forma e conteúdo. Como era esperado, já que Charlone, o showrunner, é o consagrado diretor de fotografia de Cidade de Deus e Ensaio Sobre a Cegueira.

    3% é, enfim, um esforço mais válido pela experimentação (não é todo dia que o Brasil se aventura na ficção científica) e por suas intenções do que pela excelência estrita da série. Que as brechas para uma segunda temporada convençam a Netflix e os realizadores aproveitem o potencial do gancho deixado: um embate entre a elite que compõe o Maralto e os rebeldes da Causa. Pois, se a atração é apenas (ir)regular, para ser continuada e mais bem-sucedida, a base é boa.

    Nota: 3/5

     

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