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    Pássaros de Verão: "O dinheiro substituiu a família como centro da sociedade", explicam diretores sobre o drama inspirado em fatos (Exclusivo)

    Um grupo indígena corrompido pelo narcotráfico.

    Esta quinta-feira, 22 de agosto, traz a estreia nos cinemas brasileiros de um dos nossos filmes preferidos de 2019 até agora: Pássaros de Verão, novo drama de Ciro Guerra e Cristina Gallego, os diretores de O Abraço da Serpente.

    Desta vez, eles mergulham na história da comunidade indígena Wayúu, que se envolveu com o narcotráfico durante os anos 1960 e 1970, convertendo-se em poderosos traficantes que iniciaram guerras sangrentas com outros grupos locais. O filme traz imagens belíssimas enquanto apresenta a entrada de Rapayet (José Acosta) numa família tradicional Wayúu após o casamento com Zaida (Natalia Reyes). Mas o otimismo desta união se transforma numa tragédia de grandes proporções.

    O AdoroCinema conversou em exclusividade com os cineastas sobre o projeto, grande vencedor dos prêmios Fênix e Ariel e dos festivais de Miami e Havana, além de ser selecionado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Leia a nossa crítica.

    Mike Nelson/EPA/REX/Shutterstock

    Uma história real

    Como lembram os letreiros iniciais, esta ficção é inspirada de histórias que aconteceram de fato na Colômbia:

    Ciro Guerra: "Apesar da inspiração nos fatos, nunca tentamos reproduzir exatamente as histórias que aconteceram. Os fatos foram reorganizados para a lógica da ficção. Mas de fato, o que aconteceu nos anos 1960 e 1970 na região de Guajira, na Colômbia, foi real, e os moradores sofrem até hoje o impacto destes eventos. Todos os atores que participam do filme viveram estes fatos". 

    Cristina Gallego: "Aproveitamos elementos de muitas histórias que as pessoas nos contaram sobre a época, e isso contribuiu a moldar os personagens. Ao mesmo tempo, tínhamos uma liberdade criativa por não seguir nenhuma história em particular. Afinal, esta é uma história muito arquetípica. O que se aproxima mais do real são os lugares, a maneira como carregavam as mulas etc. Mas a casa luxuosa onde os personagens moram em determinado momento corresponde não tinha a menor pertinência no meio do deserto. Então reunimos todos esses elementos para criar a nossa própria estrutura e história".

    Uma divisão em "cantos"

    Ao invés da divisão tradicional em atos, o drama é dividido em cinco cantos trágicos, como explicam os diretores:

    Cristina Gallego: "Inicialmente, essa estrutura correspondia à separação em atos. Isso vinha da estrutura de tragédia, mas também da forma como os Wayúu contam suas próprias histórias".

    Ciro Guerra: "O povo Wayúu tem o costume de contar a sua história através de um canto específico, que está presente no filme. Para eles, este canto épico e a literatura são essenciais para transmitir a memória do povo através das gerações. Acreditamos que, com a divisão em cantos, nós homenageamos a própria cultura Wayúu enquanto propomos uma conexão com a tragédia grega. É isso que faziam os poetas da antiguidade, e de certa maneira, esta história se parece uma tragédia grega. Nós queríamos ressaltar a conexão entre o local e o universal".

    Valores familiares x Busca pelo lucro

    Um dos principais conflitos de Pássaros de Verão se encontra na tradição familiar indígena sendo corrompida pela ganância e pela guerra comercial. Os diretores explicam este ponto de vista:

    Cristina Gallego: "A transformação dos valores familiares acompanha a transformação da sociedade. Esse filme fala sobre a corrupção dos valores tradicionais pelo capitalismo selvagem. De repente, com a chegada de todo esse luxo, ou desse benefício próprio, os valores morais da família desmoronam. Existem muitos subtextos e subtramas relacionados a essa trama, como a questão da intuição e da razão, nosso modo de lidar com a morte e as lutas de poder entre as esferas masculina e feminina. A ambição dessas pessoas se torna o calcanhar de Aquiles delas. Não queríamos falar de mulheres gentis contra homens maus, e sim de um mundo produtor de conflitos que buscamos entender".

    Ciro Guerra: "A família é percebida tradicionalmente como o núcleo da sociedade, é considerada a célula fundamental para a costura da sociedade. Mas as transformações no mundo após o século XX fazem com que o dinheiro exerça este papel antes reservado à família. A ascensão dos gângsteres no século XX foi sintoma desta transformação, que representou um processo revolucionário na formação dos novos indivíduos. Queríamos fazer a conexão no filme: mostrar que o dinheiro substituiu a família como centro da sociedade".

    Um filme sem exotismo

    Um dos aspectos mais interessantes do filme é seu ponto de vista: os Wayúu não são observados como um grupo distante e exótico, e os diretores tampouco tentam explicar a cultura local aos olhos estrangeiros. Para os diretores, essa era uma das principais preocupações ao elaborar o projeto:

    Ciro Guerra: "Os filmes que nós fazemos não são sobre essas culturas, mas com elas. Eles participam ativamente, desde a concepção até a direção, passando pelo roteiro. São filmes feitos em criação conjunta com os Wayúu. A autenticidade nasce disso: o que o espectador enxerga no filme são as cerimônias e rituais que eles realmente efetuam, de uma maneira em que se sentem confortáveis. Nunca os colocaríamos em situações ou cenas com as quais não estivessem de acordo, porque sem a participação deles, o filme não poderia existir. Trata-se de uma troca: por um lado, eles dividem conosco sua cultura e conhecimento, e por outro lado, nós dividimos com eles nossa experiência sobre a técnica do cinema. É um processo colaborativo no qual ambas as partes se enriquecem. Sabemos que muitas pessoas consideram a cultura Wayúu 'exótica', mas este rótulo provém de uma posição privilegiada e transparece uma visão racista. Seria uma simplificação, e eles jamais gostariam de ser representados desta maneira. Discordo fortemente de várias representações feitas de povos nativos da América Latina".

    Cristina Gallego: "Queríamos evitar tanto o olhar exótico quanto o olhar antropológico. A forma para evitar estes caminhos é nos identificar com os personagens, nos colocar nos sapatos deles. Não podemos falar sobre a cultura deles de modo globalizante, apenas retratar a vida de uma mulher protetora e sua família, seus filhos, seus tios e netos. A forma que encontramos para nos aproximar dessa cultura foi nos colocando no coração desses personagens".

    Atores profissionais + Atores sem experiência

    Repetindo o modo de trabalho de O Abraço da SerpentePássaros de Verão mistura atores bastante experientes com outros que jamais tinham atuado antes:

    Cristina Gallego: "Desde As Viagens do Vento (2007), já trabalhávamos com atores naturais, com a ajuda de preparadores de atores. Acredito que esta sido uma fortaleza para nós, porque não queríamos nem trabalhar unicamente com atores experientes, nem ter apenas rostos novos. Precisávamos retratar diferentes culturas, e para isso trabalhamos com o mesmo preparador de elenco de O Abraço da Serpente e com Carlos Medina, que se formou com Fátima Toledo. Eles nos ajudaram a criar um workshop de preparação, tanto para os atores naturais quanto para os atores experientes. Eles acabam aprendendo juntos, sempre levando em consideração que os atores naturais precisam de mais tempo de preparação".

    Ciro Guerra: "O processo durou vários meses, com muitas idas e vindas: enquanto os atores não profissionais aprendiam técnicas de atuação já assimiladas pelos profissionais, os profissionais se impregnavam da cultura Wayúu. Todos os atores profissionais possuem raízes nesta região, então de certo modo estão fazendo um retorno às suas raízes, às suas famílias. Foi um processo muito pessoal para os atores profissionais, enquanto os não profissionais abraçavam o aprendizado das artes dramáticas com bastante entusiasmo".

    Reações ao filme

    O filme foi exibido em alguns dos maiores festivais do mundo, como Cannes, e ganhou os prêmios Fênix, mas os diretores ficaram particularmente satisfeitos com o impacto da produção na Colômbia:

    Ciro Guerra: "Os primeiros a assistirem ao filme foram os Wayúu. A estreia ocorreu num cinema a céu aberto, na capital da região onde vivem. Eles ficaram muito impressionados ao verem a sua cultura na tela. Isso trouxe muitas recordações a eles, algumas delas dolorosas, mas estavam todos felizes que esta história fosse contada e se tornasse um material histórico para o futuro. O filme gerou muito debate na Colômbia por abordar esta época delicada em função das consequências do narcotráfico".

    Cristina Gallego: "A reação foi muito diferente na Colômbia e no resto do mundo. É claro que, na Colômbia, estamos falando de nossa própria história que afetou quase todas as famílias, mas sobre a qual ninguém quer falar. Os anos 1980 foram marcados pelo narcotráfico, o crescimento dos cartéis, da comercialização de cocaína e maconha, estimulando uma guerra contra as drogas e muita lavagem de dinheiro. Hoje, muitas dessas famílias fazem parte da política. Então essa é uma história escondida para nós. Para quem não tinha ideia de tudo o que ocorreu com os grupos paramilitares e o narcotráfico, o filme desempenhou um papel importante. Ele se tornou um grande sucesso de bilheteria, com quase 200 mil espectadores, incluindo diversos indígenas Wayúu. Eles se deslocaram da Guajira, uma região pequena com apenas dois cinemas, para centros maiores na intenção de ver o filme. Depois, saíam da sessão discutindo sobre personagens que remetiam a pessoas conhecidas, porque se identificaram com o filme".

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