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    Deslembro: "As mulheres representam a resistência durante as ditaduras", explicam as atrizes (Exclusivo)

    Jeanne Boudier e Sara Antunes comentam as lutas de hoje e de ontem contra os regimes opressores.

    No drama brasileiro Deslembro, a ditadura é contada pelo ponto de vista de três gerações de mulheres: a avó (Eliane Giardini), que convive com a dor de ter o filho desaparecido, a filha (Sara Antunes), uma militante incapaz de conversar sobre o tema dentro de casa, e a filha adolescente (Jeanne Boudier), que começa a descobrir as feridas do regime militar no Brasil.

    Estas personagens expressam a vivência da diretora Flávia Castro, que também viveu no exílio devido à opressão dos militares, e retornou ao país durante a adolescência. Estas mulheres compõem um retrato intimista a carinhoso, que combina os traumas do país com os traumas da garota adolescente, crescendo longe do pai.

    O AdoroCinema conversou com Boudier e Antunes sobre Deslembro, em cartaz nos cinemas:

    De que maneira a diretora apresentou a vocês este projeto tão pessoal?

    Jeanne Boudier: Para mim foi bem misterioso no início. A Flávia não tinha me contado que essa história tinha relação com a experiência de vida dela, e eu realmente não sabia. Depois, aos poucos, ela começou a se abrir mais e a me explicar que isso tinha muito a ver com ela. O fato de conhecer a Flávia fez com que eu conhecesse mais a minha personagem também. Mas quando li o roteiro pela primeira vez, não imaginei que tivesse uma história pessoal.

    Sara Antunes: Meu agente chegou e me disse: “Sara, esse filme tem a ver com você, vou te apresentar a uma diretora”. Quando eu fui para o teste, a Flávia só sabia que eu era uma atriz. Mas quando eu vi o primeiro filme dela, Diário de Uma Busca (2010), já tinha escrito para ela, dizendo: "O seu filme me tocou muito. Eu tenho uma história parecida, porque meu pai foi exilado”. Depois isso ficou perdido, mas no teste nós nos lembramos desse episódio. Para mim, contar a história da Flávia equivale também a contar um pouco da minha, e a de todas as famílias que têm um envolvimento com a ditadura e os silêncios. Eu só compreendi a história do meu pai anos depois de ele ter morrido, então não pude conversar com ele, mas conversei com a Flávia. A vida é muito louca, não é? A gente vai criando essas redes, sem saber que isso vai se desdobrar na nossa própria vida. A arte tem dessas coisas. Além disso, eu sou mãe de duas meninas, então a questão da maternidade é recente, e dialoga com a minha personagem.

    Que tipo de pesquisa sobre o período vocês fizeram?

    Sara Antunes: Eu li um livro sobre as mulheres na ditadura, que inclusive menciona a mãe da Flávia. Estas personagens eram guerreiras, mas sem corresponder ao imaginário da guerrilheira fardada, armada... A Flávia preferia a referência da mãe. Às vezes no cinema, pela falta de intimidade com esses personagens, a gente cria alguns estereótipos. Mas aquela mulher era uma mãe, que cuidava dos filhos, que fazia comida, e que também, por acaso, tinha uma arma porque acreditava que assim faria a revolução. Eu preferia que as pessoas pensassem: “Essa poderia ser minha mãe”, ao invés de se pensarem: “Nossa, uma guerrilheira!”. Mesmo assim, ela me deu umas canções de crianças que foram para Cuba, e alguns filmes sobre crianças na ditadura, como Kamchatka.

    Jeanne Boudier: Ela me passou essas referências também. Na época eu tinha quinze anos e como eu sou francesa, eu não tinha muita referência sobre a ditadura no Brasil. A Flávia inclusive achou isso interessante, e me pediu para não fazer muitas pesquisas em livros ou na Internet. Deste modo, eu reagi ao roteiro de uma maneira mais autêntica. Quando ela me dizia, por exemplo: “Nesta cena ela está se lembrando do pai que morreu”, eu vivia essas questões sem pensar em outras pessoas e outros filmes. Depois deste projeto, eu me sinto muito mais próxima dos fatos. Foi um processo interessante.

    De que maneira acredita que os acontecimentos da política atual moldam a nossa percepção sobre o filme?

    Sara Antunes: Foi curioso porque, quando este projeto apareceu, eu estava recolhendo documentos sobre a memória do meu pai e levando para Brasília. Este foi um importante acerto de contas com o passado, e também para nos proteger em relação ao futuro. Eu assisti recentemente ao filme, no mesmo dia dos anúncios da "Vaza Jato". Então o mundo vai mudando e a gente olha para a obra de maneiras diferentes. Sempre existe o porquê de os filmes nascerem em um determinado momento. Deslembro vai ser muito importante para as pessoas conseguirem entender o momento atual. Até pouco tempo atrás, ninguém gritava "Volta ditadura!" pelas ruas. Mas os bons filmes têm a capacidade de dialogar com o tempo. Daqui a vinte anos, a gente não sabe como o filme vai ser interpretado. A beleza dos filmes é o fato de se modificarem. 

    O filme retrata três gerações diferentes de mulheres. Que diferenças existem entre a percepção da avó e da mãe sobre o mesmo período?

    Jeanne Boudier: A avó também sofreu muito com este período, e isso fica visível nas cenas íntimas da Joana, quando ela fala sobre o filho. As ditaduras sempre tiveram movimentos importantes liderados por mães, a exemplo da Argentina com as Mães da Praça de Maio. Assim, elas tiveram uma importância fundamental para a mobilização durante a ditadura. São mulheres que lutaram para encontrar seus filhos. Este é o símbolo desta avó.

    Sara Antunes: Além disso, essa avó diz que não acredita mais em Deus. A política a afetou de certo modo, ela incorporou a história do filho. Ela adquiriu uma consciência sobre a Igreja que ela não teria em outras circunstâncias. Eu me lembro das meninas do Araguaia, por exemplo. As mães costureiras se dedicavam a costurar cada furinho das roupas, cada marca de bala. Esta é a simbologia das mulheres durante uma ditadura. É uma imagem de resistência.

    Jeanne Boudier: E cada uma reage de uma maneira diferente. A mãe fica em silêncio porque ainda não sabe como lidar com essa dor. É interessante a interação entre a avó e a Joana porque a garota revela um aspecto do pensamento da avó sobre o qual ela não falava mais. Quando a Joana chega, elas começam a resgatar essa história juntas. Então também existe a dinâmica do reencontro.

    Sara Antunes: A Joana representa o novo, o que faz com que essas mulheres revejam as histórias e abram o campo da palavras. Este é o campo que a gente precisa abrir. 

    Acreditam que as lutas daquela época sirvam de exemplo para as reivindicações de hoje?

    Sara Antunes: É muito duro responder a essa pergunta. Pouco tempo atrás eu participei de outro filme, sobre Maria Auxiliadora, que se chama Alma Clandestina. Esta mulher pegou em armas, mas dizia: "Eu não sou assassina. O Estado é que foi violento, que não deixou a gente votar, que não deixou a gente opinar e fez com que tivesse essa reação. Eu precisei reagir à altura”. Aos poucos, o fato de testemunhar as atrocidades do governo desperta a chama da desobediência civil. Eu nunca acredito que a gente vai conseguir paz matando, pegando em armas. Mas, de alguma forma, o grau de envolvimento com essas organizações e o fato de acreditar plenamente numa causa a ponto de dar a sua vida por ela poderia servir de exemplo para nós. A gente talvez precise de pessoas que realmente se entreguem, como o meu pai que foi preso. Esse tipo de entrega, esse tipo de crença total de que a revolução é possível, de que a utopia é possível, é o que encoraja a gente até hoje. Ainda bem que existe a esperança.

    Jeanne Boudier: Existem outras formas de lutar, por exemplo, como a cultura. Este é o exemplo desse filme. É muito importante se informar e não negar as memórias, porque são elas que formam a História. Precisamos sempre levar em consideração todas essas vivências, porque é através delas que a gente aprende. O filme é importante por isso: ele representa uma luta em si. 

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