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    Admirável Mundo Pop: Pelo direito de rever bons filmes

    Nós, de Jordan Peele, é a prova de que uma boa reviravolta é o melhor motivo para se ir ao cinema várias vezes.

    Nós, novo filme do incrivelmente talentoso Jordan Peele, estreou nos cinemas na semana passada, carregado de sustos, mistérios e surpresas (e batendo recordes de bilheteria). É o típico filme que quanto menos você souber com antecedência, melhor. Evitar os trailers e spoilers é difícil nesses tempos loucos de redes sociais, mas quem consegue essa proeza terá uma experiência mais intacta, por assim dizer. Não que aqueles dois trailers digam muita coisa sobre o que Nós realmente é...

    Após ver o filme antecipadamente na cabine para a imprensa, passei o dia querendo debater com os amigos, mas sabia que não podia entrar muito em detalhes. Fiquei preocupado em não falar demais, mas tive dificuldades em definir bem o que caracterizaria spoilers nesse caso. Na verdade, eu ainda não sei qual tipo de revelação poderia estragar a experiência em um filme como Nós. O plot twist, talvez? Aliás, dizer que o filme tem um plot twist configuraria um spoiler?

    Este é um tema espinhoso em se tratando de como consumimos a cultura pop atualmente. Conheço gente que odeia spoilers, ao ponto de perder a vontade de ver o filme ou série após saber de uma informação importante indevidamente. E também conheço quem não se importa e até gosta de saber o que vai acontecer, meio que para "se preparar para o momento" (como se isso fizesse sentido, vai entender). 

    Eu sou radical nesse ponto. Não gosto de ouvir ou ler spoilers porque acho que a surpresa é parte essencial da experiência de consumir ficção, seja em filme, série, livro, HQ ou game. No cinema, então, isso é elevado à quinta potência: não existe nada parecido com a sensação de ser impactado por uma reviravolta da trama nos minutos finais da sessão e ficar de boca aberta até as luzes se acenderem. Nas poucas vezes em que senti isso, adorei e quis repetir. E para quem ainda não viu, eu garanto: Nós é um desses filmes. 

    No já tão citado e celebrado ano de 1999, lembro de ser arrebatado por dois plot twists em um curto espaço de tempo. Primeiro, em O Sexto Sentido, a irresistível estreia de M. Night Shyamalan. E uma semana depois, com o perturbador Clube da Luta, de David Fincher, inspirado no bizarro livro de Chuck Palahniuk. Ambos me levaram duas vezes ao cinema em dias seguidos, porque eu precisava comprovar se as pistas que levaram aos desfechos estavam assim tão na minha cara. Nos dois casos, pagar o ingresso pela segunda vez valeu muito a pena.

    Não raro, ver um filme de novo colabora para a obra perder um pouco da aura positiva gerada pela primeira assistida. Afinal, o impacto da primeira vez é algo que só acontece... uma vez. Felizmente, não foi o caso de minha segunda sessão de Nós, três dias depois. Na primeira, fiquei sentado na ponta da cadeira o tempo todo, cobrindo o rosto com o casaco, angustiado. Na reprise, o medo e o suor frio deram espaço ao relaxamento despreocupado. Passei a maior parte da sessão recostado, de pernas cruzadas e sorrindo, como se saber previamente das coisas me tornasse mais privilegiado do que o restante da sala. Foi uma sensação boa, confesso.

    Quando o filme é bem feito e o plot twist é digno, reassisti-lo pode ser uma experiência tão satisfatória quanto da primeira vez. A descoberta e a surpresa são substituídos pelo prazer da sabedoria e a apreciação minuciosa dos pequenos detalhes. Nessa seleta lista, além dos já citados Nós, O Sexto Sentido e Clube da Luta, incluo também Vidas em Jogo (tambem de Fincher), A Vila e Corpo Fechado (de Shyamalan), Ilha do Medo (de Martin Scorsese), Os Suspeitos (de Bryan Singer), Os Outros (com Nicole Kidman), Amnésia e O Grande Truque (de Christopher Nolan). Quais desses filmes você viu duas vezes no cinema? Eu vi todos mais de uma vez pelo menos. E não me arrependo.

    Mas o grande twist dos filmes com plot twist é algo que talvez nem fosse a real intenção inicial: obrigar o público -- ou pelo menos instigá-lo -- a uma segunda assistida e, consequentemente, a pagar ingresso de novo. Alguns dos filmes que citei nos fazem acreditar que as evidências para o mistério já estavam espalhadas pelas cenas, e que só nos bastaria prestar mais atenção para percebê-las. Logo, uma nova conferida ofereceria uma maneira diferente de degustar o filme -- uma que nos permite desligar parte do cérebro e prestar atenção a tudo o que antes não parecia importante. 

    Parece óbvio que existe um retorno financeiro considerável por conta desse processo de rever um filme. Quanto desse estímulo ao repeteco teria ajudado Nós a atingir seus números impressionantes no primeiro fim de semana? A produtora MonkeyPaw, de Jordan Peele, inclusive brincou que a superação das expectativas de bilheteria veio do fato de os "acorrentados" do filme terem ido assisti-lo também. Mas imagine se duas a cada dez pessoas decidirem pagar ingresso de novo. Isso corresponderia a um aumento potencial de vinte por cento no faturamento previsto -- é bastante coisa, lembrando que não é todo mundo que tem condições de gastar tanto dinheiro com cinema atualmente.

    Não é algo que acontece o tempo todo, mas que precisa ser celebrado: bons filmes com plot twists incríveis são raros -- e por isso mesmo, merecem ser assistidos de novo, e de novo, e de novo. 

    Então, veja Nós. E e sentir vontade, veja de novo. Você não vai se arrepender.

    Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop há quatro décadas, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World. Siga-o no Twitter.

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