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    "É mais fácil fazer filmes e muito mais difícil fazer sucesso", diz Hal Hartley sobre o cinema independente atual (Entrevista exclusiva)

    Obra completa do ícone da Geração de Sundance nos anos 90 está em exibição na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.

    O cinema independente americano evoluiu muito nos últimos 20 anos. Sua produção maciça e tão ampla diluiu muito aquela ideia de um cinema mais marginal destinado a um nicho, bem difundida na década de 90 e identificável na obra de artistas como Kevin Smith e Larry Clark. Ainda é possível ser assim, e tantas outras coisas — até mesmo um Moonlight: Sob a Luz do Luar e conquistar tudo: público, crítica, Oscar. E isto pode ser um problema.

    Hal Hartley previu à época do fenômeno Quentin Tarantino que o cinema independente se tornaria uma indústria de expectativa comercial mais voraz, o que dificultaria o financiamento de projetos de menor pretensão de autores mais intimistas. Não deu outra!

    Espécie de membro fundador da Geração de Sundance (referência ao festival de cinema independente fundado por Robert Redford, e cuja edição 2018 termina hoje em Park City, Utah), Hartley vem percebendo essas mudanças em tempo real; em termos de produção, distribuição, expectativas e linguagem, vide sua própria obra — ao mesmo tempo tão típica e em constante evolução.

    A filmografia completa de Hal Hartley, bom parâmetro sobre o crescimento do cinema independente americano, pode ser apreciada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro até o dia 4 de fevereiro. Suas opiniões sobre o assunto, você confere no bate-papo a seguir, em entrevista exclusiva do criador de Henry FoolNed Rifle para o AdoroCinema.

    Você disse, há alguns meses, que o sonho dos anos 90 morreu no que diz respeito ao cinema independente americano. O que você queria dizer com isso?

    Eu não lembro bem o contexto, pode ter sido uma interpretação... Mas, por alguns anos em meados da década de 90, houve algo muito animador no mercado, todo mundo estava muito empolgado com as diferenças, com os diferentes tipos de vozes, histórias, estilos. E eu tive muita sorte de estar ali naquele época (risos). Eu sempre senti que não fosse fazer cinema mainstream, convencional. Eu até os assisto, mas minha energia em fazer filmes não era mainstream — eu estava interessando em fazer coisas diferentes, nunca pensei em algo comercial. E eu fui, muito felizmente, surpreendido pelo modo como os meus filmes foram recebidos no mundo do entretenimento sem eu estar fazendo algo comercial. Eu só estava ganhando a vida fazendo filmes, e isso, de certa forma, era um sonho.

    Você acha que o mercado de filmes independentes mudou muito, ou não?

    Em alguns sentidos, é o mesmo, e em outros é diferente. A grande questão é que o mercado cinematográfico é regido pela tecnologia. A Internet, por exemplo, mudou tudo. E é uma mudança animadora. Há 10 anos, até menos, uns 7 anos, não havia tantas formas de se financiar um filme, e ser visto. Então, a grande mudança é tecnológica, e vem dando muitas oportunidades para uma grande variedade de cineastas e contadores de histórias. Por outro lado, no geral, a abordagem está cada vez mais conservadora e voltada para o mainstream. Eu estou tentando fazer televisão no momento, e é preciso um esforço maior, persistir bastante. Mas, só o fato de não ser mainstream não significa que será terrivelmente difícil — tanto que venho conversando com pessoas. Isso é bem animador.

    Então a tecnologia vem facilitando a produção de filmes...

    É mais fácil fazer filmes. Mas, uma vez que o filme está pronto, é mais difícil distribuí-lo e fazer sucesso. Você tem os custos de produção, paga os atores, a equipe, tudo, e isso pode ser barato. Você pode editar filmes em seu laptop. Isso é incrível! Mas existem tantos, tantos filmes, e feitos por tanta gente... Eu até gosto das dificuldades, mas hoje são produzidos 100 filmes por semana! De pessoas que nunca ouvimos falar! Ninguém vê 100 filmes por semana...

    Isso vai ao encontro do que você disse há 20 anos, quando Quentin Tarantino estourou para o mundo. Que havia todo um anseio de filmes comerciais serem lucrativos e isso seria cada vez mais difícil na medida em que a produção cinematográfica se tornava mais acessível.

    Sim, foi exatamente o que eu quis dizer na época. Quando acontece uma mudança como aquela, uma abertura para diferentes vozes, estilos e histórias, as coisas tendem a ficar mais conservadoras. Quando Quentin surgiu, fazendo filmes tão bem-sucedidos e tão divertidos, aquele exemplo de grande sucesso se tornou a noção do que era o cinema independente, um modelo. Por isso que eu sempre tive desconfiança sobre o termo "independente", do contexto em que a palavra "indie" é usada. Eu nunca usei essa palavra até eu fazer sucesso. Eu era um cineasta alternativo, aí então começaram a atribuir a mim essa nova palavra, "indie". Quer dizer, isso se tornou uma marca. E sempre que se tem uma marca, também se tem as coisas boas e as coisas ruins.

    Falando em mudanças, eu gostaria de saber se elas também influenciaram em termos criativos o seu cinema. Você acha que seu estilo mudou desde os anos 80 e 90? Como? 

    Sim, eu acho que mudou. Você muda conforme você trabalha, conforme você envelhece...  E, de certa forma, você também esgota suas ideias. Acho que essa é uma das razões por eu não me encaixar em um modelo de cinema convencional. Para mim, é mais importante crescer como uma pessoa criativa do que fabricar um produto esperado para um mercado específico. Eu nunca fui o tipo de pessoa que pensa "Hum, vamos lá fazer um filme do Hal Hartley" (risos). Eu nunca fui assim. Minha motivação é criar algo novo. Dito isso, quando olho em retrospectiva para todos os meus filmes, que já são 14 longas-metragens, eu vejo uma consistência entre eles. São muito pessoais, com personagens interessantes, um estilo mais prático e um formalismo que eu tento afastar do naturalismo... Enfim, acho que é isso. E que eu sei mais hoje do que há 20 anos.

    Algo bem particular em seus filmes é se tratarem de histórias sobre pessoas específicas, peculiares. Em geral, são personagens desajustados. Você enxerga esses tipos no cinema independente atual?

    Eu nunca usei esse termo, "desajustados". Eu sei o que você quer dizer com isso, mas o que eu sempre quis fazer foi contar histórias sobre pessoas que estão, certamente, lutando para ser quem são. E que seguem constantemente com essa questão. Agora, eu tenho visto uns filmes dessa temporada do Oscar, e quando alguém me diz que eles são independentes, eu respondo "Sério??? Mas eles são enormes!". São indies que não se parecem com indies (risos).

    A Geração de Sundance de que você fez parte se mantém como legado. Você consegue percebê-lo no cinema atual?

    Sim. E isso é natural. Quando eu tinha 20 anos, eu olhava lá para trás. Ia ver os filmes vistos pelos meus avós, descobrir coisas que nunca tinha visto antes. Quando comecei a fazer filmes no final dos anos 80, eu estava descobrindo filmes de meados dos anos 60 e início dos anos 70. Como eu não os conhecia, eram verdadeiras descobertas, eles soavam novos para mim. Então, acho que é assim mesmo que acontece.

    Bom, nós estamos conversando agora por causa de uma retrospectiva sobre toda sua carreira, e não só para exibição, com discussões sobre os seus filmes. Essa é uma demonstração da relevância da sua obra, de sua permanência. Como você se sente a respeito?

    É interessante: alguns desses filmes não eram vistos como sendo tão relevantes. As pessoas não quiseram distribuí-los, exibi-los, nem mesmo escrever sobre eles. Falo de filmes que fiz após Confiança e Simples Desejo... Dez anos inteiros de trabalho que não foram bem distribuídos. E agora vocês poderão ver todos eles! Isso é muito bom para mim, pois eu preciso me convencer de que esse trabalho tem valor em qualquer tempo, não só agora. Em outro cenário, eu só estaria falando com você se eu pudesse obter dinheiro a partir disso nesse momento. Para algumas pessoas, receber boas críticas nesse momento significa ter dinheiro nesse momento. De modo contrário, o seu filme é um fracasso. Por sorte, eu tive uma formação diferente (risos). Os cineastas de que eu gosto, os dramaturgos que eu li, todos os artistas que me inspiram vêm de um lugar em que não se pensa a curto prazo, se pensa a longo prazo. Quando se faz arte, você tenta fazer algo atemporal. E todos sabemos que, frequentemente, essa não é a coisa mais popular a se fazer; mas você pode ter a sorte de ser descoberto por outra geração. 

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