
Exibido exatamente um dia após Vazante, o filme de estreia dos diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio foi ovacionado pelo público - não por acaso, levou o prêmio de melhor filme segundo o júri popular -, justamente pelas características diametralmente opostas às do longa de Daniela Thomas. Protagonizado por atores negros e sem se ater a questões sociais ou raciais, o filme apresenta um espirituoso retrato cotidiano no Recôncavo Baiano, nas cidades de Cachoeira e São Félix. Como poucas vezes se viu no cinema brasileiro, o negro enfim ganhava voz como cidadão pleno, sem qualquer amarra acerca de questões históricas ou sua posição na sociedade. Mais ainda: Glenda Nicácio se afirmava como uma das poucas diretoras negras em atividade.

Se tamanha exaltação é compreensível diante do cenário de momento, com Café com Canela de imediato assumindo involuntariamente a posição de ser uma espécie de "anti-Vazante", a ânsia por justiça social também nas telonas tupiniquins provocou uma contradição: por mais que tenha diálogos divertidos e bons personagens - Babu Santana e Arlete Dias, especialmente -, Café com Canela traz problemas típicos de um primeiro longa, com excessos escancarados resultantes de uma ânsia em fazer tudo ao mesmo tempo agora. Tal postura, como ressalta a crítica do AdoroCinema, faz com que o filme "banalize o risco", devido às inconstâncias técnicas e narrativas. Ou seja, a bandeira política que se tornou batia de frente com a qualidade do próprio filme.
Cinco meses depois, Café com Canela foi escolhido para abrir a 21ª Mostra de Tiradentes, como parte da homenagem ao ator Babu Santana. "Filhos de Tiradentes", já que por anos vieram ao festival antes de se aventurar em seu primeiro longa-metragem, os diretores Ary Rosa e Glenda Nicácio marcaram presença e, é claro, comentaram sobre esta trajetória.
"Café com Canela era uma história que eu e Glenda queríamos contar", explicou Ary Rosa. "Não fazia sentido contar uma história situada entre Cachoeira e São Félix estrelada por brancos, pois é uma cidade negra. Era uma questão de identidade, mas isto acabou se tornando uma ação política. Hoje, no Brasil, apenas 4% dos filmes feitos foram estrelados por mulheres negras, em um país onde há uma porcentagem muito maior que isso. Então, como representação, Café com Canela é algo muito importante."

"Filmes que trazem bandeiras políticas mais definidas são muito importantes também, mas o Café com Canela optou por não [trazer]", complementou o diretor. "Queríamos contar uma história e acabamos tendo este impacto político. Ficamos bastante surpresos com esta repercussão, em como o audiovisual é carente de uma representação dos negros e, imagino, de outras minorias também."
"É preciso refletir sobre isso. Muito desta euforia sobre Café com Canela é justamente por uma representação e uma formação por questões de identidade, que até então eram negadas", afirmou a diretora Glenda Nicácio. "Um grande passo é a gente conseguir trazer estas crônicas cotidianas pro afeto, e dar uma liberdade pros artistas em geral de que podemos fazer arte falando de afeto e amor, outras coisas além de temas ligados ao social. Porque também parece que às vezes vira uma prisão, é sempre preciso falar destes assuntos."
Ainda sem previsão de estreia no circuito comercial, Café com Canela inicia agora sua trajetória internacional: o longa-metragem será exibido no Festival de Roterdã, entre os dias 25 e 27 de janeiro.
O AdoroCinema viajou a convite da organização do evento.