Lançado em 2004, A Paixão de Cristo, dirigido por Mel Gibson, é um dos filmes mais impactantes e controversos da história do cinema. Com um orçamento modesto de US$ 30 milhões, o filme arrecadou mais de US$ 612 milhões mundialmente, tornando-se o filme cristão de maior bilheteria de todos os tempos. A produção retrata as últimas 12 horas da vida de Jesus Cristo (interpretado por Jim Caviezel), desde sua agonia no Jardim do Getsêmani até sua crucificação e ressurreição.
Gibson optou por uma abordagem visceral e hiper-realista, filmando em aramaico, latim e hebraico para maior autenticidade histórica. O filme foi elogiado por sua fidelidade aos relatos bíblicos e pela intensidade emocional, mas também criticado por sua violência gráfica e acusações de antissemitismo. Esta resenha analisará os aspectos narrativos, estéticos, teológicos e culturais do filme, além de explorar seu legado controverso.
A Paixão de Cristo baseia-se principalmente nos Evangelhos do Novo Testamento, mas também incorpora elementos da obra The Dolorous Passion of Our Lord Jesus Christ, da mística católica Anna Catarina Emmerich. O roteiro, coescrito por Gibson e Benedict Fitzgerald, enfatiza o sofrimento físico de Jesus, desde a flagelação até a crucificação, com poucas interrupções para flashbacks de momentos como o Sermão da Montanha e a Última Ceia.
A escolha de filmar em línguas antigas (aramaico e latim) foi uma decisão ousada, inicialmente concebida para evitar legendas e confiar na expressão corporal, mas Gibson acabou incluindo-as para melhor compreensão. Essa abordagem reforça a imersão histórica, embora alguns críticos argumentem que o excesso de violência desvia o foco da mensagem espiritual.
O filme é notório por sua representação gráfica da tortura de Jesus. As cenas de flagelação, em particular, são extremamente detalhadas, com o uso de um sangue artificial desenvolvido especialmente para o filme, composto de corantes suspensos em glicerina para manter um tom escarlate realista. A maquiagem de Jim Caviezel levava até 10 horas para ser aplicada, e o ator chegou a dormir com ela para evitar repetir o processo no dia seguinte.
A violência extrema dividiu opiniões: alguns espectadores consideraram-na necessária para transmitir a magnitude do sacrifício de Cristo, enquanto outros acharam que o filme beirava o gore gratuito, comparando-o a produções de terror como O Massacre da Serra Elétrica. O antropólogo francês René Girard, em sua resenha, defendeu que o realismo de Gibson restaura o escândalo original da Crucificação, algo que versões anteriores do cinema haviam suavizado.
Desde seu lançamento, A Paixão de Cristo foi acusado de perpetuar estereótipos antissemitas, principalmente pela representação dos líderes religiosos judeus como os principais antagonistas. Críticos argumentaram que o filme poderia incitar ódio contra judeus, uma preocupação que ganhou força devido às declarações polêmicas de Gibson em sua vida pessoal.
No entanto, defensores do filme, incluindo teólogos e historiadores, afirmam que a narrativa segue fielmente os Evangelhos, onde os líderes judeus de fato desempenham um papel na condenação de Jesus, mas sem generalizar para todo o povo judeu. Gibson também ampliou a compaixão de personagens como Simão de Cirene e Verônica, figuras que demonstram piedade em meio à brutalidade.
Apesar das controvérsias, A Paixão de Cristo foi abraçado por comunidades cristãs e católicas como uma obra devocional poderosa. Relatos de conversões religiosas entre membros do elenco e da equipe foram amplamente divulgados, como o caso do ator Luca Lionello (Judas), que era ateu e se tornou católico após as filmagens.
Gibson também afirmou que ocorreram "milagres" durante a produção, incluindo a cura de uma menina epiléptica, filha de um membro da equipe . Esses relatos reforçaram a percepção do filme como uma experiência transcendente para muitos fiéis.
Vinte anos após seu lançamento, A Paixão de Cristo permanece um marco no cinema religioso. Gibson anunciou uma sequência, The Resurrection of the Christ, prevista para 2026, que explorará a ressurreição de Jesus com uma narrativa não linear, incluindo elementos de "ficção científica" . Jim Caviezel retornará como Jesus, e o filme promete ser tão ambicioso quanto o original.
A Paixão de Cristo é um filme que desafia, comove e divide. Sua abordagem crua do sofrimento de Jesus o torna uma experiência intensa, quase insuportável para alguns, mas profundamente significativa para outros. Se as críticas sobre violência excessiva e antissemitismo são válidas, também é inegável que o filme conseguiu capturar a dimensão sacrificial da fé cristã de uma forma nunca antes vista no cinema.
Como obra cinematográfica, é tecnicamente impressionante, com direção de fotografia meticulosa (Caleb Deschanel) e uma trilha sonora (John Debney) que amplifica o drama. Como fenômeno cultural, continua a gerar debates sobre arte, religião e responsabilidade histórica. Seu legado persiste não apenas nas bilheterias, mas na maneira como redefine os limites do cinema religioso.