Vencedor de Cannes, Sirât apresenta uma jornada espiritual brutal pelo deserto
por Bruno Botelho dos SantosEm determinado momento de Sirât (2025), filme de abertura da 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencedor do prêmio do júri do Festival de Cannes, um dos personagens principais faz o questionamento pertinente se "é assim que parece o fim do mundo?", enquanto outro dá um resposta contundente: "Já faz tempo que é o fim do mundo".
Vivemos em um campo minado, onde cenas de guerra e catástrofes são constantes em nossa rotina e transmitidas ao vivo em tempo real. Por outro lado, isso faz com que o impacto delas não seja o mesmo. Como pergunta Susan Sontag em seu ensaio "Diante da Dor dos Outros”, “de que outro modo deixar uma marca mais funda quando existe uma incessante exposição a imagens e uma excessiva exposição a um punhado de imagens vistas e revistas muitas vezes? A imagem como choque e a imagem como clichê são dois aspectos da mesma presença”.
É nesse cenário de colapso que Sirât, dirigido por Óliver Laxe (responsável pelos filmes Mimosas e O que Arde), surge como um reflexo brutal e pessimista sobre o estado do mundo atual enquanto busca uma transcendência espiritual para seus personagens e uma sociedade irreversivelmente quebrada.
Retrato Filmes
Em Sirât, Luis (Sergi López) e seu filho Esteban (Bruno Núñez Arjona) viajam até Marrocos para uma rave no meio das montanhas do deserto, buscando sua filha e irmã que desapareceu meses atrás em outra dessas festas. Eles distribuem a foto da jovem pelos festeiros que se movem ao som da música eletrônica e com uma liberdade que desconhecem. Os dois decidem seguir um grupo que está a procura de uma última festa que acontecerá no meio do deserto, mas a jornada os obriga a confrontar os próprios limites.
Quando Sirât começa, é difícil imaginar o caminho tortuoso que o filme de Óliver Laxe vai seguir. Essa surpresa é uma ferramenta que o diretor usa para chocar os espectadores.
Na primeira metade, a busca de Luis e Esteban já nos parece uma tarefa quase impossível, mas somos levados por um sentimento de otimismo quando nos deparamos com empatia e solidariedade de um grupo de personagens que resolve ajudá-los a se locomover até uma festa no meio das montanhas. É aqui que a jornada deles se torna aterrorizante ao lado de Steff (Stefania Gadda), Jade (Jade Oukid), Tonin (Tonin Janvier), Bigui (Richard 'Bigui' Bellamy) e Josh (Joshua Liam Herderson).
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Após a apresentação dos personagens, a estrutura narrativa de Sirât se estabelece como um road movie, mas Óliver Laxe transforma a jornada deles pelo deserto e as montanhas de Marrocos como um filme de suspense e terror por causa das adversidades climáticas e geográficas da região. Nisso, somos colocados em um estado de tensão constante que remete diretamente ao clássico O Comboio do Medo (1977), de William Friedkin, pelo confronto entre homem e natureza.
Progressivamente, o filme começa a usar acontecimentos inesperados e chocantes que causam desconforto e reforçam a ideia que estamos vivendo o fim dos tempos e seus personagens estão condenados, transitando pelo purgatório. Como viver diante de tragédias sem sentido e inesperadas? Sirât vai encontrar sua resposta justamente no contemplativo e metafísico, ao mesmo tempo que confronta esses corpos com o brutal.
Óliver Laxe não é nada sutil em suas alegorias visuais, mas é eficiente na construção de uma experiência física e existencial que navega pela jornada individual dos protagonistas e traça comentários políticos pertinentes – ainda que não aprofundados – sobre nossa sociedade convivendo com guerra, miséria e opressão. O filme nunca é explícito sobre qual é o conflito estamos vendo em tela, mas a presença de militares, observações pontuais e clima de instabilidade fazem paralelo direto com nosso mundo atual e situações reais como genocídio em Gaza, guerra na Ucrânia e crise dos refugiados.
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A dança e a música são elementos fundamentais para contar a história do filme. Enquanto a música eletrônica pulsa, os corpos se movimentam em transe numa espécie de ritual de passagem entre a vida e a morte no fim dos tempos. Inclusive, o título Sirât se trata de uma palavra árabe que significa "caminho" e conversa diretamente com as temáticas evidenciadas na produção, como uma maneira de encontrar algum propósito no olhar interior, no contato humano com seu lado místico e ancestral.
Óliver Laxe compreende muito bem a potência que tem a imagem de um paredão de som na vastidão do deserto e, com ajuda da direção de fotografia de Mauro Herce, constroi tanto o deslumbramento quanto o vazio existencial nas belas paisagens do Marrocos. Tudo isso conduzido por um trabalho sonoro impactante, especialmente na trilha de Kangding Ray, para entregar uma experiência sensorial desorientadora.
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Dificilmente você sairá indiferente de Sirât, filme que faz um retrato brutal sobre nossa sociedade em colapso e tenta encontrar algum sentido humano na transcendência espiritual, mas pode desagradar por suas alegorias um tanto óbvias sobre guerra e cenas mais chocantes. De qualquer forma, é uma experiência existencial única, comovente e visceral pelo deserto. Prepare-se para uma verdadeira porrada nos sentidos.
Filme assistido na 49ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo