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    Ficção Americana
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Ficção Americana

    Astro de Westworld brilha em comédia dramática que une fórmula algorítmica para ridicularizar sistema branco

    por Diego Souza Carlos

    Nos últimos anos, um movimento interessante tem tomado conta de editoras, estúdios, produtoras e outras empresas vinculadas (ou não) ao mercado do entretenimento: o reconhecimento da falta de diversidade em seus times e, consequentemente, a inserção de pessoas pertencentes a minorias identitárias nestes espaços.

    Essa importante ação, no entanto, não chega apenas com o valor da inclusão, mas também é uma resposta do mercado às formas de consumo em um lugar onde pessoas com poder de capital não se viam representadas. A partir dessa virada de chave; livros, séries, filmes e programas de TV passaram a seguir esse modus operandi. Apesar de ser um movimento necessário, muito da origem desta toada se deve mais à pressão pública do que ao esforço genuíno em aumentar vozes - e é neste lugar em que American Fiction se encaixa, uma sátira moderna aos modismos do capitalismo.

    Inspirado no livro Erasure, de Percival Everett, o longa acompanha Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright), um escritor cansado de ter seus trabalhos negados pelas editoras. Em sua última tentativa, ele entende que sua carreira está estagnada, pois sua obra não é considerada "negra o suficiente".

    Enquanto isso o livro "We's Lives in Da Ghetto", de Sinatra Golden (Issa Rae), chega a lista de mais vendidos, deixando o autor em crise ainda mais frustrado. Ao perceber o tipo de conteúdo que o público está interessado, Thelonious decide escrever um romance satírico sob pseudônimo na intenção de expor as hipocrisias do mundo editorial.

    Discursos em negrito

    AMazon MGM Studios

    Uma sátira desde o seu primeiro segundo, Ficção Americana é uma daqueles filmes multigênero que tem a metalinguagem em sua essência. Nem sempre de maneira óbvia, mas com cartas abertas ao público - principalmente em seus momentos finais. Cord Jefferson, roteirista veterano que faz sua estreia na direção com o longa, utiliza algumas facetas interessantes de seu antigo e novo ofício, a escrita e a direção, para criar espaços de possibilidades dentro da história, enquanto reflete com humor personagens da vida real.

    Um homem negro na casa dos 50 anos, Monk está cansado de ver seus livros estagnados nas prateleiras. Mesmo sendo um bom escritor, ele sabe que seus romances não se encaixam no que editoras e o próprio público anseiam. Ao encarar uma obra que parece ser feita para atingir milimetricamente a cartilha do mercado, acima de tudo, suprindo expectativas de publicadoras brancas que veem apenas temas estereotipados em histórias criadas por autores negros, ele mesmo cria uma narrativa.

    Nesta fórmula um tanto “algorítmica”, o personagem abusa nos trejeitos dos guetos afro-americanos, utilizando uma enxurrada de palavrões das periferias, em um contexto regado a violência, morte e traição para entregar uma obra “negra o suficiente” para estar alinhado às ideias da branquitude sobre a vida de pessoas negras. Embora não seja escrachado, esse estima quanto a produção preta é reforçada a todo instante, com comerciais de TV celebrando o mês negro enquanto passa apenas cenas de violência e majoritariamente através da interação afetada de pessoas brancas.

    Sátira e metalinguagem

    AMazon MGM Studios

    Apesar de ser a primeira incursão de Cord atrás da câmeras, o cineasta já conta com uma vasta gama de produções excelentes em seu currículo, com créditos no roteiro de projetos como Watchmen, The Good Place e Master of None. Simples, sua direção não prejudica a história. Através das lentes, ele encontra formas de criar poesias visuais - a maioria sob uma surpreendente melancolia - em um drama que parece ter dificuldade em se conectar com a ideia de sátira. Há um descompasso entre as diferentes propostas do filme.

    A crítica do diretor aborda uma conversa antiga, porém constante na indústria cultural. É como no livro Luxúria, escrito por Raven Leilani, em que a protagonista, uma assistente editorial, caçoa das escolhas da empresa que coloca publicações de diferentes gêneros e estilos juntas na sessão de literatura afro-americana.

    Assim como no filme, a garota logo observa que além da unificação vinda de uma estrutura racista, editoras privilegiam temas como escravidão, servidão moderna e violência urbana quando o assunto é negritude. Em uníssono com o personagem de Jeffrey Wright, ela sabe que todas essas histórias reproduzem uma série de discursos antigos sobre o que muitos acham ser parte da realidade comum de uma pessoa negra, mas trata-se de um vício narrativo que permeia toda produção de conteúdo.

    É preto o suficiente?

    Amazon Studios

    Enquanto coloca os dramas de Monk na tela, o diretor cria o contraste à narrativa “preta” do livro de fachada criado pelo escritor. Consequentemente, forma embates contra estereótipos negros, tanto na esfera social como especificamente no mercado cultural. A própria vida do protagonista funciona como artifício para justificar que, sim, há pluralidade entre as narrativas de homens e mulheres negras. A complexidade das relações do personagem - a morte de um ente querido, o Alzheimer da mãe, as ações do irmão incompreendido, a nova namorada, o desejo em criar histórias relevantes e a sua relação com outros escritores - representam apenas uma única existência - e nenhuma delas, nesse caso, é permeada pelo contexto do livro-sátira.

    Dessa forma, o drama de American Fiction funciona tanto como parte da narrativa principal, que emociona e cativa, como uma ferramenta de contra-argumento ao que se espera de histórias vindas dessas pessoas. Apesar de acertar em cheio na sua forma metalinguística de apresentar os temas de maneira diferente do que se espera, falta um pouco de ousadia ao formular essa crítica.

    American Fiction "joga no seguro", já que deixa algumas respostas nas mãos do espectador e propõe, através do protagonista, resoluções sem riscos. Trata-se de uma sátira que brinca com diversos elementos da problemática do racismo, mas prefere se manter em uma caixa de polimento ao invés de ousar em suas dinâmicas. Ao fim, Monk acaba lidando com as suas escolhas sem deixar de abalar, necessariamente, o sistema. Mesmo assim, a resposta da audiência terá diferentes reações diante de cada realidade - e este filme é uma excelente adição à manutenção desta conversa.

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