Paul Mescal de Jessie Buckley reimaginam a tragédia (e o amor) de William Shakespeare em obra de Chloé Zhao que vai te fazer chorar
por Katiúscia ViannaEm 2021, Chloé Zhao fez história como a segunda mulher a ganhar o Oscar de direção por seu trabalho no belo Nomadland. Depois, ela foi atraída pro mundo da Marvel com Eternos, que não foi o melhor filme do MCU, mas definitivamente não merecia o ódio que ganhou. Para limpar o paladar, ela surge com sua mais recente obra-prima: Hamnet: A Vida Antes de Hamlet - um filme que deveria estar na definição do dicionário para “emocionante”.
Universal Pictures
Eu recomendo ver o filme sabendo o mínimo possível, apesar de ser uma história já conhecida, mas aqui vai um resumão: o filme começa com o romance de Agnes (Jessie Buckley) e Will (Paul Mescal), um encontro que parecia destinado nas estrelas e um amor que ninguém seria capaz de impedir. Ela tem a reputação de ser uma bruxa da floresta, com grande conexão com a natureza e habilidades surpreendentes. Ele é um tutor de grego considerado inútil pelo pai raivoso - mas que, eventualmente, iria se tornar William Shakespeare.
Apesar das reclamações de seus parentes, Agnes e Will se casam e constroem uma bela família, junto com a filha mais velha, Susanna (Bodhi Rae Breathnach), e os gêmeos inseparáveis Hamnet (Jacobi Jupe) e Judith (Olivia Lynes). Mas quando uma doença causa tragédia, o luto parece ser a inspiração para uma das maiores obras da literatura: Hamlet.
Mas, na realidade, o filme não faz muita questão de tentar ser uma biografia de William Shakespeare - tanto que seu nome completo só é dito pela primeira vez no terceiro ato do filme. Suas obras são pequenas sementes que vão construindo o caminho para essa revelação, então os mais desavisados podem ser pegos de surpresa. O importante para o longa é descrever essa visão - que apenas podemos imaginar - da história real.
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Sabe aquela piada da Marvel na qual o Loki fica caindo por 30 minutos? Substitua o verbo por "chorando" e adicione mais uns 20 minutos nessa contagem: essa é basicamente a minha experiência vendo Hamnet. Descrever em palavras que façam jus a beleza desse filme é até difícil, uma vez que essa obra permeia por diferentes adjetivos: tem a delicadeza e o naturalismo que já vimos de Chloé Zhao em Nomadland, mas também é visceral e potente.
Através de Agnes, a história possui certos elementos sobrenaturais: ela tem a habilidade de ter visões simbólicas do futuro, graças a uma conexão muito profunda com a floresta. O primeiro vislumbre que temos dela é Jessie Buckley com um vestido vermelho (sua cor durante todo o filme), cercada pelo verde de uma floresta. Ali, ela parece fazer parte daquela paisagem, enquanto seus tons de vermelhos parecem se destacar dentre as cores pálidas e frias dos outros moradores da cidade - num belo trabalho em conjunto de Zhao com o diretor de fotografia Lukasz Zal (Zona de Interesse) e a figurinista Malgosia Turzanska (Pearl).
Mas ao mesmo tempo não é uma história sobre fantasmas ou poderes mutantes dos X-Men, é uma história de pertencimento. Em primeiro lugar, Agnes e Will descobrem que pertencem um ao outro, se enxergam como outros não são capazes de vê-los. Depois vemos os pequenos gêmeos brincando que trocam de lugar, se apresentando como duas metades de uma laranja - algo que será essencial para a grande virada da trama.
Só que quando a tragédia chega, você perde seu chão. O local que você habitava nunca mais será o mesmo. E o roteiro de Zhao com Maggie O’Farrell (autora do livro original) aborda o que acontece depois. Will questiona em certo momento do filme que Hamnet “não pode ter apenas desaparecido”. Ele tem que estar em algum lugar: um local que não é ao lado da família, mas ainda em algum lugar onde nunca o perderão completamente. E é nesse local que a arte entra, como uma forma de se reencontrar e voltar a dar sentido para as coisas. É no teatro que Will troca de lugar com o filho e é através da arte que Agnes pode começar a se curar ao lado do marido.
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Além do belo visual e o roteiro tocante, o elenco também impressiona em Hamnet. Jessie Buckley surge abismal como Agnes, carregando o mistério que existe ao redor da personagem, mas também expressando tudo com apenas um olhar. Ela parece realmente uma figura etérea da floresta, ao mesmo tempo que solta um grito passional tão humano, até ficar sem forças para soltar a voz. As expressões de Buckley (já indicada ao Oscar em A Filha Perdida) durante a sequência final do teatro - que vão desde raiva até um olhar encantado - ficam marcadas para a história do cinema.
Por outro lado, Paul Mescal - também conhecido como o homem que mais faz o público chorar em Hollywood - apresenta outra performance fenomenal, desde a inocência da paixão, passando por um homem atormentado que tenta se entender como ser humano, até um pai em luto que se joga no trabalho para tentar seguir em frente. A parceria do astro de Aftersun com Jessie forma uma dupla digna de poemas, literalmente neste caso.
As crianças de Hamnet são belas revelações, principalmente Jacobi Jupe, que assume o personagem título. Minha primeira lágrima veio com esse pequeno astro, não com os talentosos adultos indicados ao Oscar. Curiosamente, ele é irmão, na vida real, de Noah Jupe (Um Lugar Silencioso) que também aparece no filme como o intérprete de Hamlet. Destaque também para a grande Emily Watson, que surge como Mary, a mãe de Will que tem uma complicada relação com a nora.
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Mais cedo, comentei que é melhor quanto menos souber do filme, mas, honestamente, eu já conhecida tudo que ia acontecer e mesmo assim, Hamnet foi um dos filmes que mais me tocou nos últimos anos. Belas performances, uma direção maestral de Chloé Zhao (que também fez a montagem com Affonso Gonçalves, brasileiro que editou Ainda Estou Aqui e vários outros projetos por aqui e em Hollywood) e uma história tocante que vai muito além de só entender a inspiração por trás de uma obra clássica. É sobre o sentimento que existe ali, sobre esse menino que irá renascer infinitamente na arte e nunca será esquecido.
Eu já devia saber que Hamnet ia partir meu coração quando citam a história de Orfeu e Eurídice nos primeiros vinte minutos de filme. Esse conto grego tem importância no relacionamento entre Agnes e Will, além de combinar com o tema de amor e tragédia da história. Particularmente, a paixão de Orfeu também inspirou Hadestown, um belo musical da Broadway que também me faz chorar copiosamente, então eu já estava destinada a usar os lencinhos que me ofereceram no início da sessão. Sim, ofereceram lenços de papel antes da sessão. Esqueça a pipoca, esse era o nível de choradeira compartilhada no escurinho do cinema. E, sinceramente, não foram lágrimas perdidas.
*O AdoroCinema assistiu ao filme no Festival do Rio 2025.