A verdadeira vida da família do comercial de margarina
por Aline PereiraA primeira cena de Uma Família Feliz vai aquecer o coração de todos os fãs de filmes de suspense: uma mulher dirige um carro em alta velocidade e, no banco do passageiro, está uma menininha. Enquanto a criança grita, a mulher acelera em direção a um caminhão e colide com ele em um acidente fatal. O início matador cobra seu preço ao longo da história e prepara o terreno para uma reviravolta que se atropela tanto quanto sua protagonista e comprova que o gênero do “quem matou?” é cheio de armadilhas tanto para quem assiste, quanto para quem consta a história.
Com direção de José Eduardo Belmonte (Billi Pig) e roteiro de Raphael Montes (Bom Dia,Verônica), Uma Família Feliz acompanha a história de Eva (Grazi Massafera) e Vicente (Reynaldo Gianecchini), um casal de propaganda de margarina, que tem os filhos perfeitos, em uma casa perfeita com aparências perfeitas. Como já é de se imaginar, não há nada remotamente feliz na história. Eva acaba de dar à luz a um menino e convive com o turbilhão emocional da maternidade, enquanto faz o papel de madrasta das filhas gêmeas do marido, que é viúvo de seu casamento anterior.
É a partir das crianças que o drama começa a se desenrolar: uma das meninas enfrenta um tratamento severo de saúde, ao mesmo tempo em que começa a apresentar marcas que indicam violência física – o mesmo acontece com o bebê. Logo, todos os dedos são apontados para Eva, que precisa provar sua própria inocência. O longa, então, se desenvolve com discussões sobre a “cultura do cancelamento”, o esgotamento da maternidade e a pressão de atender a expectativas sociais.
Em Uma Família Feliz, a percepção sobre as pistas e as reviravoltas dependem muito da familiaridade de seu espectador com esse tipo de suspense, que se apoia na descoberta de qual é o personagem verdadeiramente responsável pelos acontecimentos. Quem já tem alguma proximidade com outros thrillers não deve demorar muito a matar a charada e, possivelmente, vai identificar uma série de "tradições", que passam pelo comportamento instável da protagonista, o estereótipo do “marido perfeito”, as investigações e as aparições mais do que oportunas dos coadjuvantes.
As pistas que apontam para a solução do mistério parecem sutis não porque são exatamente engenhosas, mas porque são, de forma geral, vagas ou soltas. Fica mais difícil se deixar levar pela história e pelos personagens quando as decisões que eles tomam não parecem muito “realistas” dentro do universo proposto, uma característica sempre bem-vinda em tramas que querem oferecer tensão a seu público.
Sem spoilers, é claro, mas em uma das cenas, por exemplo, o pai sai de casa e deixa o bebê sozinho com as duas filhas crianças – bem, até pode ser que isso aconteça na vida real, mas não parece natural. Os personagens de Uma Família Feliz vivem um mundo plástico que, ao mesmo tempo em que faz uma crítica justamente ao julgamento das aparências, não vai muito fundo nas reflexões para desconstruir sua falsa perfeição. O debate está lá, é relevante e atual, mas deixa a sensação de que parou no meio do caminho.
Para quem não é muito dos filmes de suspense (entre as produções brasileiras, inclusive, são poucas as que seguem o gênero neste formato), talvez Uma Família Feliz seja mais atraente. No fim das contas, a reviravolta é, sim, chocante e Grazi Massafera é, sem dúvidas, um grande destaque. Eva é uma protagonista cheia de camadas que não necessariamente são expostas no filme, mas a atriz traz uma profundidade que nos ajuda a entender a personagem sem que muita coisa precise ser dita com todas as letras.
Reynaldo Gianecchini também se sai bem no papel do homem perfeito que, é claro, parece estar escondendo alguma coisa. Um ano antes de Uma Família Feliz, o vimos no suspense policial de Bom Dia, Verônica – um repeteco bem-sucedido da parceria com o escritor e roteirista Raphael Montes, nome que também está por trás da trilogia A Menina Que Matou Meus Pais.
No Festival de Cinema de Gramado 2023, onde o filme estreou, Raphael Montes brincou que os Grazi e Gianecchini seriam nossos “Barbie e Ken brasileiros”: um casal cuja imagem perfeita se desfaz pouco a pouco. Nesse quesito, vale mencionar também a estética de Uma Família Feliz: a casa de “novela do Manoel Carlos” e os figurinos super alinhados ganham um ar ainda mais sinistros quando a personagem de Grazi surge exercendo a profissão de pintar bonecas hiper realistas – você já sabe: bonecas em filmes sombrios são sempre sinal de alguma coisa.
É Eva quem nos conduz pela história e é uma narradora não confiável: leva um tempo até realmente termos certeza do que realmente está acontecendo com ela e o que a levou ao desfecho apresentado na primeira cena do filme. A angústia de acompanhar a mulher que acabou de ter um filho e está visivelmente esgotada, ao mesmo tempo em que se equilibra entre ser uma boa esposa e não deixar de lado a profissão que a faz feliz é o grande trunfo aqui.
Talvez, em especial, porque causa uma sensação incômoda: ao mesmo tempo em que é impossível não desconfiar dela, a dúvida de estarmos cometendo uma injustiça mantém a tensão à medida em que ela passa a ser hostilizada pelos outros personagens – e eles têm menos informações sobre Eva do que nós, que estamos acompanhando os acontecimentos através de seus olhos. Assim, o “cancelamento” da mãe negligente se torna o distúrbio daquele mundinho perfeito e torna a protagonista cada vez mais instável.
O tema, no entanto, é didático: talvez a cultura do cancelamento esteja por aí há tempo demais para não nos atentarmos às suas nuances. Tanto Eva, quanto os outros personagens parecem um pouco “simples” demais no que diz respeito às formas de lidar com os conflitos – falta, em todo mundo, o famoso “desconfiômetro”. E volto a dizer: talvez até haja alguns pontos de semelhanças com a vida real, mas ainda assim, não parece muito verossímil.
As armadilhas dos filmes de suspense são muitas: há uma linha bem difusa entre incluir enigmas que podem ser desvendados e “enganar” o público. Nesse sentido, o filme de José Eduardo Belmonte não tenta subestimar sua audiência e está longe de ser uma experiência frustrante – mas talvez seja frágil como a perfeição que deseja desconstruir.