Indicação histórica ao Oscar, concorrente de Divertida Mente 2 e Robô Selvagem encanta ao mostrar trama impactante com simplicidade
por Diego Souza CarlosÉ engraçado como a experiência de se sentir uma peça divergente e estranha no todo é mais comum do que se imagina. Em meio a tantos conflitos, possibilidades de interações e o esforço para seguirmos nossas jornadas - um resumo do que é a vida para muitos -, chega a ser um alívio quando descobrimos que não existe um único formato para se ter pessoas ao nosso lado - e, de certa forma, Flow consegue manifestar toda essa ideia em pouco menos de uma hora e meia.
Completamente sem falas, com exceção do som dos animais e da própria natureza que a todo instante parece estar convulsionando, mudando e desafiando a sobrevivência dos personagens, a animação da Letônia chegou tímida assim como o gato preto que protagoniza essa aventura distópica. Para além de ser uma bela história sobre empatia, companheirismo e sacrifícios, fora das telas a animação conquistou um espaço inédito na história do cinema mundial, com alguns dos primeiros prêmios recebidos pelo país europeu.
A trama acompanha um felino vivendo em um mundo tomado pelos comandos da natureza: as florestas crescem sem pedir licença, os mais variados tipos de criaturas podem surgir no cenário e enchentes são uma ameaça constante no desafio da sobrevivência. É neste mundo semelhante ao nosso, mas sem a aparente presença de humanos (vivos, pelo menos) que uma família disfuncional se forma em um exercício de solidariedade acima das diferenças.
Flow consegue transmitir o sentimento dos animais de maneira muito clara. Sem se apegar a caricaturas, o diretor Gints Zilbalodis e sua equipe de animadores tiveram um trabalho delicado ao apresentar as emoções dos bichinhos sem puxar para os costumeiros lados da Disney e Pixar. Apegados ao hiperrealismo, os profissionais tentam replicar movimentos e maneirismos das espécimes com todo o tipo de peculiaridade que envolve a vida de um gato, de um cachorro, de uma ave serpentário, de um lêmure e de uma capivara. Aliás, alguns dos peixes mais bonitos e inventivos do cinema estão aqui.
Os personagens não têm traços humanóides como em Zootopia e também não estão neste espaço lúdico de conversarem entre si, como em boa parte das animações que chegam ao mainstream, a citar franquias como Madagascar e Kung-Fu Panda. Assim, o trabalho sonoro se preocupa também a colaborar nessas emoções e, da mesma forma como sabemos que nosso pet está feliz ou triste, conseguimos notar tais sinais em Flow.
Por exemplo: o gato protagonista é tão curioso e teimoso quanto a capivara é sossegada (uma paz de espírito danada!). O lêmure colecionador é desconfiado ao mesmo tempo em que o cachorrinho segue ao estereótipo de um animal bobo e empolgado. Não existem recursos visuais extras que ajudem a delimitar essas características, mas o comportamento de cada um os concede uma personalidade palpável. Assim como na “vida real”, o olhar diz muito.
Além de uma viagem curiosa em que um grupo misto de animais faz um elo de confiança e proteção, Flow nunca deixa claro o que aconteceu no planeta. A aparente ausência de seres humanos poderia até indicar a completa inexistência de pessoas nessa versão da Terra, mas objetos, edifícios com arquiteturas elaboradas, barcos e até monumentos grandiosos compelem o público a entender que em algum momento a humanidade se fez presente.
Ao caminhar da trama, os animaizinhos acabam passando por pontos que demonstram que uma grande calamidade assolou esses espaços, embora todos eles ainda tenham certa herança dos seres humanos. Ruínas que poderiam estar em The Last of Us, com o verde dominando o concreto. Nesse ponto, faz-se pensar sobre o que houve com o planeta, principalmente com a braveza das águas, dos ventos, da chuva e até mesmo com aparições que podem indicar que este cenário já havia se tornado selvagem há muito tempo.
Aqui, pode-se criar a hipótese de que a jornada de Flow é, para além da reunião inesperada de diferentes corpos que passam cooperar pelo objetivo da vida, trata-se também de uma representação de como a natureza pode sobreviver àqueles que a destroem hoje. O gato preto que nos leva adiante, portanto, está reconhecendo espaços assim como o público e chega ao seu destino transformado, com direito até mesmo a transcendências.
Essa curva de crescimento do nosso felino é também uma demonstração de como mesmo em um ambiente inóspito, uma vez que haja determinada segurança e confiança, é possível florescer e cooperar com os demais. Tanto para o gato, quanto para o planeta, a resiliência parece uma recompensa após um período de sofrimento.
Flow foi desenhado a partir do Blender, um software gratuito para modelagem de imagens 3D. Com um orçamento de aproximadamente 3,7 milhões de dólares, valor ínfimo ao lado de outras produções da linguagem, como Divertida Mente 2 (200 milhões), Moana 2 (150 milhões), Robô Selvagem (78 milhões) e Homem-Aranha: Através do Aranhaverso (100 milhões).
O desenvolvimento de 5 anos e uma equipe formada por profissionais novos formaram a receita para a criação de um mundo tão vivo, em que todas as texturas estão alinhadas com proporção e simetria, bem como há um espaço criativo admirável.
A direção do longa, por exemplo, não se acomoda com facilidades, dando um tom de ação quando necessário e dinamizando a interação dos animais de maneira fluida. Além disso, o longa também abre espaço para a fantasia em meio a suas flutuações emocionais, proporcionando cenas surpreendentes e uma poesia visual que conversa diretamente com a narrativa.
A simplicidade de Flow alcança um espaço interessante na experiência de assistir ao filme - e provavelmente isso levou tantas pessoas a se afeiçoarem à trama. Na superfície, acompanhamos a jornada de um felino que precisa aprender a sobreviver ao lado de seres diferentes. Mais a fundo temos também uma visão espiritual guiada por sacrifícios e perseveranças.
Entre diferentes formas de se absorver a história de um gato em um mundo distópico, fica um gosto agridoce de que é possível enxergar a pluralidade da vida de maneiras inusitadas. Ainda que muitas enchentes possam atrapalhar o caminho, a possibilidade de transformar tudo - até mesmo o medo da água - é o que faz muitos seguirem adiante.